sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Figuras da Terra- por Manuel Silva

O admirável contador de estórias- parte III
Nas noites de verão, as varandas e os quinze degraus de acesso das duas casas transformavam-se num improvisado anfiteatro invertido, pejado de crianças e adultos. O nosso contador de estórias, de pé, com os antebraços apoiados na resguarda que separa as duas varandas, divisória constituída por um monobloco granítico, dominava as atenções e quando expressamente solicitado ou por sua iniciativa dizia, qual pancada de Molière - “É cmó oto”1. A expressão mágica tinha um efeito arrasador, todos nós nos transformávamos em espetadores atentos e silenciosos para ouvir a estória que, inevitavelmente, se seguia.
No final de cada estória comentava-se a mesma e salientavam-se as lições de moral. Tratava-se, portanto, de um verdadeiro “momento do conto” onde o narrador assumia convicta e pedagogicamente a arte da comunicação.
Eis algumas das estórias que o compadre contava mais frequentemente, sem a reprodução fiel da forma como eram narradas mas, depois das expressões acima referidas, o leitor pode imaginar quão maravilhoso e interessante era ouvi-lo.

1.     A mentira grande como o Credo
Uma viúva vivia numa quinta de renda com os seus três filhos: um padre, um doutor e um pastor.
Um dia foi falar com o senhorio e disse-lhe que não tinha dinheiro para pagar a renda.
O senhorio fez-lhe a seguinte proposta:
- Se um dos teus filhos me trouxer uma mentira tão grande como o Credo, eu perdoo-te a renda.
A pobre viúva chegou a casa e relatou aos filhos a proposta que o proprietário da quinta lhe fez. Quer o padre, quer o doutor, não mostraram ser capazes de engendrar tão grande mentira mas o filho pastor aceitou o desafio.
- Fica descansada, mãe, que eu vou falar como senhorio!
No dia seguinte o filho pastor dirigiu-se à casa do senhorio que também era seu padrinho. Ao chegar junto do senhorio disse-lhe:
- Toquei o sino com um badalo de lã e ouvia-se por 10Km de terra chã. Depois fui ao rio colhi agrões (agriões?), vendi agrões e até ao padrinho lhe vendi um cabaz.
Mas isso é uma grande mentira – respondeu o senhorio.
- Então, meu padrinho, minha mentira aprovada, renda da quinta perdoada.

2.      O pintassilgo e o cuco
No tempo em que os animais falavam, um pintassilgo estava a cantar às portas do céu e Nossa Senhora gostou tanto do seu canto que deu instruções ao S. Pedro para que lhe desse tudo de bom para o passarinho comer.
O pintassilgo saiu do céu, todo contente, a cantar e encontrou um cuco.
O cuco perguntou-lhe o porquê daquela alegria toda e o pintassilgo relatou-lhe então a forma com foi tratado no céu.
O cuco foi, também, pôr-se a cantar às portas do céu …
Quando regressou, vinha a chorar e encontrou-se com o pintassilgo, este perguntou-lhe o que tinha acontecido.
O pobre do cuco respondeu-lhe que tinha levado com uma moca e que não lhe tinham dado comida.
Então o pintassilgo perguntou-lhe como tinha cantado.
- Eu cantei cu-cu - respondeu o cuco.
- Ai cantaste com o cu, então cantasses com o bico – disse-lhe o pintassilgo.

3.      O Zé Miséria (ou “De galhoto em galhoto”, como nós pedíamos)
O Zé Miséria foi para o Brasil e deixou cá os pais, um irmão e uma irmã.
No Brasil não lhe correu a vida bem e regressou. Quando chegou a casa dos pais encontrou o irmão a cozer feijões e a comê-los.
- Que estás fazendo, pá?
- Comendo os de cima e esperando os debaixo.
- Então e a nossa irmã?
- Está chorando o riso do ano passado.
- Então e os nossos pais?
- O pai viu um mealheiro no cimo de um castanheiro, subiu lá e caiu de galhoto em galhoto, chegou ao chão e espatifou-se.
- E a nossa mãe?
- A nossa mãe com tudo isto foi-se… Fizemos-lhe um funeral tão lindo que a saia tinha trinta cores.
- Ui! Isso foi uma riqueza!

Compreensão da estória:
O irmão estava a comer os feijões crus à espera que viessem os do fundo já cozidos.
Quanto à irmã, ela namorava um rapaz e ele arranjou-lhe um filho e agora passa miséria porque tem que trabalhar para se governar a ela e ao filho.
O pai com a queda que deu do castanheiro morreu.
Relativamente ao funeral da mãe, a saia tinha trinta cores que correspondiam aos trinta remendos.

O diálogo entre os irmãos continuava:
- Ah, mas ainda existe o mealheiro. Tinha muito dinheiro – perguntava o brasileiro.
- Olha, eram dois ouriços com castanhas podres.
Concluiu o brasileiro, o Zé Miséria:
- Puta que pariu Portugal, se no Brasil há miséria…aqui há muita mais.

N.B.
1. Ao terminar este “folhetim” sobre uma das figuras vilamendenses que recordo com mais saudade e que tentei reportar o mais fidedigna possível a forma singular como o contador de estórias transmitia o seu enorme manancial de saberes.
Quis, também, homenagear e deixar publicamente o meu apreço por este homem que, apesar das dificuldades em se expressar, era capaz de maravilhar crianças, jovens e adultos com as suas estórias.
Um verdadeiro autodidata, este admirável contador de estórias. 
Obrigado, “compadre” José Bragança!
2. Agradeço a todos aqueles que contribuíram para o meu avivar de memória, particularmente à minha mãe.

                                                    Manuel da Silva Gonçalves
41- É como o outro

3 comentários:

Anónimo disse...

grande Zé Bragança.

Anónimo disse...

gostei dos artigos sobre o sr. Zé.

Anónimo disse...

Eram bom que escrevessem sobre mais pessoas..........