sexta-feira, 23 de junho de 2023

A cultura de cancelamento ou o cancelamento da Cultura

(Publicado originariamente no jornal A Guarda na edição do dia 15 de Junho)

Estranhos estes tempos em que não há tempo para parar. Pensar. Reflectir.
O tempo… que passa (ou não passa) reforça em nós um sentimento de uma certa impresença, pelo que não fizemos, pelo que fazemos, pelo que desejamos fazer.
De facto, passamos o tempo enredados no passado, preocupados no futuro, e o presente deixamo-lo ir na esperança (não real) de um Amanhã salvífico que acabe com todos os males do Ontem. Nos entretantos, o Hoje, já não é!..
Estranhos estes tempos… em que se perde tempo (que não se tem- algumas vezes; não se quer ter- muitas vezes; ou não se sabe ter- imensas vezes) com questões que não deviam (?) sequer alcançar o limiar de uma questão no nosso pensamento, muito menos na linguagem, expressa como temática de discussão pública: a denominada cultura de cancelamento. Nomeadamente nos livros, na literatura (mas nas restantes artes em geral).
Esta não-questão, transformada em confrontação, parece estar para durar. Aqui chegados, e infelizmente aqui situados, há razões para se analisarem.
Esta moda do politicamente correcto (que de correcto só na incorrecção) nasce da clivagem ideológica e do excesso de identidade. Paradoxalmente, num mundo altamente globalizado o medo de perdermos referentes identificativos com um grupo, uma comunidade, um povo… leva a extremismos tanto ideológicos como identitários em que ambos se acabam por fundir e confundir: o eterno Eu contra o Outro, num plano onde simples palavras, expressões, conceitos… se tornam armas de arremesso no reforço de um lado, pretensamente desrespeitado.
Numa cegueira de se querer apagar qualquer tipo de suposta discriminação (presente, passada ou futura!) tenta-se que nos livros palavras, frases, textos, temáticas sejam apagados, substituídos … reescritos. E um sem número de questões se levantam: qual o direito e quem tem o direito de alterar a letra de um autor? Se ele escreveu aquilo, é aquilo que tem de constar (bem basta o trabalho meticuloso e melindroso da Tradução).
Qual o direito e quem tem o direito de decidir que autores e que temáticas são alvo de revisão? Que critérios? Terreno pantanoso.
Qual o direito de sermos nós hoje a decidir o que as pessoas do futuro podem ler? Que direito temos nós, hoje, de os privar, e de os privar de decidir sobre o que ler e conhecer?
Quem são os ofendidos sobre determinadas palavras, textos, temas..? Aleatório exemplo particularizado: se um conjunto de cidadãos negros consideram um texto que evoca, que fala da colonização e da escravatura de uma perspectiva em que se sentem desconfortáveis, serão eles representativos de todas as pessoas negras e do seu sentir? E ainda mais interrogações se desnovelam ou enovelam numa novela de apreciações e considerações por demais importantes e não menos angustiantes.
Com certeza que há livros muito bons e muito maus (e no permeio ainda mais). Mas daí a querer expurgar os que supostamente não prestam, vai um limite muito grande. Cada qual lê o que entende, não que lhe impõem (quando muito, o que lhe propõem). Por isso mesmo vivemos em democracia e temos capacidade de escolha. Querer que uns escolham pelos outros tem um nome: Censura! Qualquer reescrita de livros enquadra-se nisso mesmo, pelo que este assunto deveria ser, à partida e não à chegada; um não-assunto.
O caminho de cancelar, alterar, reescrever palavras, temas, textos (e seus contextos) levaria a que em cada época se pudesse rever sistematicamente essa literatura, o que conduziria a uma desvirtuação complexa (e completa) da mesma. A literatura tem um tempo e um lugar e um pensar que deve ser respeitado e nunca alterado. E se o for, só pelo autor… e em última instância poderíamos mesmo questionar: o criador tem ele próprio “legitimidade” para o acto de reescrita substantiva da sua própria criação?!.
Estranhos estes tempos!..

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