sábado, 8 de setembro de 2012

Vozes da Terra- Acácio Pereira

Texto segundo o acordo ortográfico de Vila Mendo
Falar de Vila Mendo, e sobretudo de memórias, das nossas memórias, é falar de um tempo e de uma organização social que já não existe, ou melhor quase não existe, porque o espirito desta gente e desta terra perdura e perdurará certamente; em Vila Mendo a afinidade não é só familiar porque cada habitante faz parte da nossa família, em sentido restrito ou num conceito mais alargado, e a alma desta gente é maior do qualquer outra, Vila Mendo marca é seguramente uma marca de referência.
Nasci em Vila Mendo em 1966, ano de boa produção e boa colheita, e passei aí a quase totalidade da minha infância até à juventude, e mesmo quando por motivos escolares ou profissionais estive longe, apenas o estive em distância quilométrica, porque sempre estive perto, mesmo muito perto, estive lá em pensar; ainda hoje, em qualquer parte de Portugal ou do mundo, quando me perguntam ou digo de onde sou, eu digo orgulhosamente, sou de uma aldeia próxima da Guarda, Vila Mendo.
A vida entretanto encarregou-se de me fazer partir para outras paragens, voltando à origem sempre que me é possível.
Memórias e momentos
As memórias são muitas, e são um misto complexo, de saudade, de nostalgia, de ternura e de reviver um tempo que já não volta.
Lembro-me perfeitamente do corrupio de gente que se encontrava na rua ou nos terrenos de cultivo e das luzes ténues das candeias a petróleo, acesas em todas as janelas, de uma ponta à outra da aldeia, porque a eletricidade ainda não tinha chegado e as ruas e casas não tinham iluminação elétrica.
Os miúdos eram mais que muitos, para jogar à espada lua, ao fito e à bola, quando havia bola para jogar.
O sistema de entreajuda e a vivência comunitária era uma realidade, as malhas do centeio eram o expoente exemplificativo, ninguém trabalhava por dinheiro, mas por troca ou mera ajuda, quando alguém adoecia, era sentido como se fosse um dos nossos e lá vinham as receitas da avó ou da vizinha; desembaçar para as distensões musculares, cortar as bichas em vez da desparasitação, escalda-pés para a constipação, e carneira de porco para a papeira ou trasorelho ou tesorelho, como ali se dizia.
Noutros tempos em que o mundo era maior, o nosso mundo era Vila Mendo e pouco mais, mas nem por isso para nós era menor, pelo menos tinha o tamanho da nossa imaginação; os engarrafamentos eram de vacas em direção ao chafariz, para beberem água, à saída ou à vinda da pastagem, o tempo tinha os segundos mais longos, havia tempo para tudo, e desse maldito stress, garanto-vos que ninguém nesta aldeia tinha ouvido ou sabia o que era, e a maior parte de nós não distinguia um elétrico de um quiosque, e sabem porquê? Resposta simples, nunca tinha visto nenhum.
No inverno uma mistura de lama, água e bosta de vaca, cobria todas as ruas, era preciso ver bem onde se punha os pés. Esta mistura era petisco para as galinhas que na rua se alimentavam à socapa dos guardas do Marmeleiro, que quando vinham, multavam os seus donos; digo-vos, não sei como se conseguia identificar o dono destes animais, mas bastava perguntar de quem eram, e as pessoas diziam e assumiam, gesto de seriedade misturado de ingenuidade e medo.
Dos sabores, a merenda, posso hoje comer a melhor lampreia, mas não me sabe como sabia a dita, comida a meio da tarde, à hora da merenda como se dizia, está na hora de merendar, sentado no chão, com as vespas ou abelhas amarelas a aparecerem de rompante atraídas pelo cheiro presunto.
Lembro o primeiro dia de escola, os sinos a rebate e muitas coisas mais.
Lugares
De muitos lugares me recordo, mas seguramente o largo da moreira, cujo nome lhe advém do tempo que naquele largo, naquela praça, existia uma amoreira, não sei se de amoras brancas ou vermelhas; também largo do chafariz, é aquele lugar que mais marca, porque era ali que pulsava o coração da aldeia, servia para lugar de tertúlia, como ponto de encontro, ponto de encruzilhada e quase passagem obrigatória, já para não falar da água que em mais lado nenhum me sacia a sede como aquela,
Uma Pessoa
O meu pai, Armindo Pereira, se por outro motivo não fosse, porque me deixou cedo demais, porque não nos despedimos e porque não acabámos de conversar; mas, variadas referências, me levam a falar dele e olhá-lo como exemplo, homem simples, reto e íntegro prezava a palavra, para comunicar e gracejar, honrava a palavra. Via nele uma grandeza de alma. Com ele aprendi o valor das coisas e da vida, entendi o que é ser generoso, reto e sincero e depois da sua partida aprendi a dar outro valor à vida.
Passado, presente e futuro
Para falar de futuro é preciso falar do passado, penso que não será nenhuma blasfémia se eu disser que Vila Mendo e toda a freguesia de Vila Fernando, sempre pensou pequeno, faltou sempre ambição coletiva e nunca soube aproveitar o facto de estar próximo da Guarda, está à distância tempo de 12 minutos, eu lembro para quem conhece, que 12 minutos é o tempo que vai do estádio da luz ao estádio de alvalade em hora de trafego médio, ou seja em termos práticos Vila Mendo é periferia da Guarda.
Perdoem-me a ousadia, por mais que custe ler e ouvir, à nossa terra faltaram políticos locais à altura dos pergaminhos do lugar. Já fez mais pela localidade a iniciativa associativa de cariz local, de que é exemplo a Associação Cultural e Recreativa de Vila Mendo do que qualquer politico, que seja da minha lembrança.
Em pleno século XXI haver uma aldeia, e repito, às portas da Guarda, sem saneamento básico, água e esgotos é uma vergonha, em termos um bocado caricatos é o mesmo que dizer, posso efetuar pagamentos eletrónicos na sala, mas se não tiver fossa sética, tenho de ir baixar as calças, defecar, atrás de uma giesta, que vergonha! Qual é a empresa ou empresário que com condições destas se quer ali instalar!
Desde sempre esta terra assentou a sua economia na pecuária, agricultura e no seu comércio, e eu estou convicto, que esse terá de ser o seu futuro. Urge repensar novas formas de agricultura e novas formas de divisão da propriedade agrícola, poderá demorar décadas mas o tempo encarregar-se-á de me dar razão, só um projeto âncora com este cariz pode dinamizar Vila Mendo.
A importância de um lugar mede-se pelo seu capital humano, e quanto a isso tenho a certeza que Vila Mendo vai continuar a ser grande.

Vila Mendo, 7 de Agosto de 2012

5 comentários:

Anónimo disse...

Belo texto e bela reflexão.

Nomada_cr disse...

Muito bem, Sr, Presidente!
A alma e o sentir da gente de bem é coisa rara nos tempos que correm.

Um abraço ribatejano;

M. Carmo

Anónimo disse...

Belas memórias as do Acácio. é bom as pessoas recordarem o passado e dar a conhecer aos jovens tempos que não conheceram. a ver se mais gente colabora neste recordar de tempos idos. muito bem

Luís Filipe Gonçalves Soares disse...

Concordo plenamente: muito boas as memórias do Acácio, aliás como foram as do Pereira, do Júlio, da Maria Alice Nina, do Mário. Várias outras pessoas já foram desafiadas. Esperemos pelos seus contributos.

Júlio Manuel Antunes Pissarra disse...

É sempre reconfortante e agradável conhecer a visão que outras pessoas têm da nossa Terra. Assim, melhoramos, não só, o conhecimento que temos relativamente a essas pessoas, mas principalmente em relação a Vila Mendo. Gostei.