domingo, 9 de julho de 2017

Entrevista a António Alves Fernandes

António Alves Fernandes nasceu na Bismula (Sabugal) nos finais da 2ª Guerra Mundial (Novembro de 1945). Ainda criança, trabalhava já nos afazeres agrícolas e, não raras vezes, foi a Espanha procurar o contrabando da subsistência dele e de tantos como ele. Frequentou o Seminário missionário em Gouveia. Não se sentindo vocacionado para a vida sacerdotal optou por seguir um percurso de vida que passou por Setúbal, Lisboa e Castelo Branco. Depois do 25 de Abril, ingressou nos serviços prisionais (26 anos como director). Como tantos portugueses combateu na Guerra Colonial na Guiné. No presente, reside em Aldeia de Joanes. A título de curiosidade, é pai do Presidente da Câmara do Fundão. 
Actualmente escreve crónicas no blogue Capeia Arraiana e acaba de lançar o livro "O Nosso Homem": um livro de crónicas, um livro de memórias, passadas e presentes, um livro de gente concreta, como concretas as suas vivências e que será (apesar de já o ser) um documento (de descoberta) para o futuro...
De Vila Mendo pouco conhece. Faremos os possíveis para que a fique a conhecer até porque brevemente lhe lançaremos um pequeno desafio...

De que forma o seu trabalho nos Serviços Prisionais influenciou a sua vida e como avalia o quadro actual dos guardas prisionais?
Há mais de dezassete anos que estou aposentado dos Serviços Prisionais, onde trabalhei seis como Técnico de Educação e vinte e seis como Director do Estabelecimento Prisional de Castelo Branco, com apoio à Cadeia da Covilhã. 
A formação de oito anos na Escola Apostólica do Cristo Rei em Gouveia foi uma preciosa ajuda para desempenhar essa missão o melhor possível. O meu trabalho prisional passava muito pela compreensão das nossas fraquezas humanas. Na essência, nenhum de nós é santo, caminhamos diariamente, caímos aqui, levantamo-nos acolá, cometemos erros e continuamos. O trabalho com Homens e Mulheres iguais a nós, mas que por um motivo ou outro se viram em situações limite, foi decisivo na minha relação com o próximo. 
O Corpo da Guarda Prisional tem uma das mais difíceis tarefas da função pública. Há dias um Guarda Prisional disse-me com toda a sinceridade: “como motorista de carro celular já fiz dois milhões e quinhentos mil quilómetros, e mais umas centenas nos Serviços de Inspecção”.
Tem de lidar todos os dias, a todas as horas, com pessoas cujo comportamento nem sempre é o mais conveniente. No Infantário Prisional de Castelo Branco, onde estavam 25 crianças, filhos de reclusas, era distribuído à noite um suplemento alimentar, iogurte, bolachas… para os meninos e meninas. Por mais chocante que pareça, havia mães que comiam os iogurtes dos seus filhos, sujeitando-se às respectivas sanções disciplinares. Este é apenas um pequeno exemplo do comportamento da população prisional, existem casos muito mais graves.
Hoje temos um Corpo de Guardas Prisionais bem preparado, é de justiça salientar a atenção do Dr. António Costa, aquando Ministro da Justiça, e do actual Diretor Geral Dr. Celso Manata.
Temos na Guarda Prisional muitos elementos licenciados e com uma extraordinária formação nas áreas do Direito, das Relações Humanas e Sociais, da Gestão de Conflitos e tantas outras.
A caminhada de um Guarda Prisional também é longa e difícil, cansativa, longe da família, às vezes também cai e necessita de ajuda para se levantar. É uma classe profissional que tem a minha total solidariedade, pois vivi de perto as suas dificuldades e preocupações.

Como avalia os políticos no momento actual?
Há de tudo como em todas as actividades humanas. Há aqueles que trabalham e se esforçam por melhorar a vida das populações e há aqueles que quando chegam ao gabinete estão mais preocupados em saber se chegou um convite para o almoço ou para dar um passeio.
Conheço pessoalmente políticos que são uns autênticos heróis, direi mesmo “escravos” da causa pública, chegam a trabalhar 12 ou mais horas por dia, muitas vezes sem fins-de-semana, sem tempo para dedicar à família, com grande sacrifício da sua vida pessoal em prol do bem-estar dos outros. São genuinamente empenhados em lutar contra problemas graves, muitos deles que se arrastam há décadas. Vivem intensamente a missão de servir os outros. Sei que muitas vezes isso não é reconhecido, a ingratidão também faz parte da natureza humana, mas parece-me uma imensa injustiça meter tudo no mesmo saco. Quase toda a gente afirma que um político não faz nenhum. Às vezes gostaria de convidar uma dessas pessoas a passar apenas uma semana com a rotina atrás referida. Acho que mudariam logo de opinião, não há nada como a experiência… 

É natural da Bismula e vive em Aldeia de Joanes, duas comunidades rurais. Como vê o futuro do interior em geral e destas comunidades em particular?
Nasci numa terra arraiana, a Bismula, para muitos desconhecida. É uma pequena povoação, junto à fronteira Espanhola, que viveu muitos anos do contrabando. Aos sete anos já andava com os meus irmãos a tentar fintar a Guarda Civil e a Guarda Fiscal para ajudar a pôr algum pão na mesa. Era uma aldeia pobre, fria, isolada… Aí passei uma infância de sobrevivência com os meus pais e irmãos, o que me marcou para sempre. Quando emigrámos para Setúbal diziam que cheirávamos a pobreza e tivemos muitas dificuldades em nos adaptar. 
Hoje vivo em Aldeia e Joanes, que não tem comparação com a Bismula. Aldeia de Joanes está a dois passinhos da sede do concelho, o Fundão, e a minha Bismula a 25 km do Sabugal. Aldeia de Joanes, além de ser uma aldeia lindíssima, tem muitos pomares, uma agricultura produtiva, uma pequena indústria e rápido acesso aos cuidados médicos. Os bismulenses, pelo contrário, foram, durante décadas, banidos dos cuidados de saúde e morreu muita gente por falta de assistência médica. Tenho orgulho em afirmar que a minha Mãe, apesar da pobreza, ajudou a salvar muitas vidas na minha freguesia. 
Em termos de progresso económico e social, não há comparação possível entre Aldeia de Joanes e a Bismula. Podemos dizer que Aldeia de Joanes é hoje um bairro do Fundão e a Bismula é quase um deserto, apenas no mês de Agosto tem algum movimento com o regresso dos emigrantes, uma ou duas semanas porque a praia é mais apelativa.
Embora haja gente a batalhar pelo interior, vejo extremamente sombrio o seu futuro. Há freguesias onde os “habitantes” estão quase todos no cemitério… A floresta, fonte de sobrevivência dessas populações, sofre atentados e fogos todos os anos, as escolas fecham, os correios, as caixas de multibanco, os cuidados de saúde… Ficam os lares, casas de turismo rural para dois ou três dias e pouco mais… 

Como ex-seminarista, como vê a acção da Igreja nas comunidades?

Durante estes anos da minha vivência, sempre estive próximo da Igreja, de determinados valores aos quais podemos chamar de “humanismo cristão”. Tenho colaborado na Catequese, na Cáritas, na Irmandade, nas Festas Religiosas. Nem sempre fiz as coisas bem, tenho muitos defeitos como qualquer ser humano, mas sempre me esforcei para a Igreja não se desligar da sociedade em que vivemos. 
Hoje temos um Papa Francisco muito virado para a prática da caridade, da solidariedade, para aqueles que nada têm. Gosto desse Homem simples de origem popular, ao lado dos pobres e excluídos. É essa a prática da Igreja que também defendo. Ser cristão é uma aventura, muitas vezes interrogo-me sobre a doutrina da Fé e tenho as minhas dúvidas. 
Há tempos tive um grave problema de saúde, estive internado 19 dias, e posso afirmar que as visitas de um Assistente Religioso e de uma Freira me ajudaram muito no campo espiritual e humano. Essas duas figuras cristãs não vou esquecê-las tão depressa, transmitiram-me Fé, ânimo, coragem e fizeram-me olhar para as camas ao lado, onde também estavam outros doentes. Ao fim de pouco tempo, comecei a falar com eles e a registar num bloco as suas histórias. 
A Igreja sempre foi um importante elo e factor de união e identidade numa comunidade. Se a comunidade está em crise, acho que a Igreja também tem que assumir a sua responsabilidade. Outra situação é o mundo em que vivemos, cada vez mais egoísta, competitivo, cada um por si… Estamos a perder a dimensão espiritual e de proximidade uns com os outros a favor do lucro mais imediato e dos bens materiais. 
Na Igreja, como na Política, há gente a trabalhar arduamente em prol do bem comum, mas também há gente que se acomodou e parou no tempo. 

Como combatente na Guerra Colonial, o que mais o marcou?
Desde logo a violência na instrução militar, quase não nos deixavam respirar. Uma coisa é disciplina, outra é sufoco. 
Lembro-me que deixei de ter nome para passar a ter um número. O meu vocabulário também se alargou, pois vinha dos “Padres” e estava habituado a outro tipo de liturgia… 
Nunca mais esqueci o guindaste a carregar os caixões quando cheguei à Guiné.Impossível não lembrar o meu amigo e companheiro de carteira, o António Novo de Vila do Touro, que foi vítima de uma granada. Ainda hoje rezo e choro por ele, os bons tempos que passámos juntos… 
Marcou-me muito o terror, mas também a amizade, a solidariedade e a camaradagem, éramos uma grande família, a dor de um tocava em todos. 
Não esqueço as Festas do Natal e da Páscoa sem poder vir a Portugal. 
Acho que há muito a dizer sobre a Guerra Colonial, é ainda hoje um assunto tabu. Falta sobretudo ouvir a experiência pessoal de quem por lá passou. Muitas vezes só vejo sociólogos, antropólogos, psicólogos ou politólogos a falar de pé alto sobre uma realidade que não conhecem. Falta o Homem concreto contar a sua história concreta, e ser ouvido sem preconceitos. Para quem está no mato, sujeito a perder a vida a qualquer momento, é muito pouco relevante a situação política do país, os estudos sociológicos, etc.. É matar para não ser morto. 

Acaba de lançar um livro de crónicas – “O Nosso Homem”. O que o levou a decidir-se por tal? Como definiria o seu livro? 

Sempre gostei de escrever sobre matérias e pessoas que fui conhecendo. Só depois de me ver reformado, consegui fazê-lo com maior regularidade, com uma exigência quase diária a par da Agricultura. Umas vezes saía bem, outras assim-assim e por vezes mal, são ossos do ofício. O livro começa com a história verdadeira de um Homem que era odiado por todos, todos fugiam dele, parecia ter lepra. Era meu vizinho, nunca o desprezei, várias vezes falei com ele. Um dia desapareceu e todos me diziam que tinha ido para um Lar, só que ninguém sabia onde era esse Lar. Passaram-se meses e não havia notícias do Homem. Resolvi então entrar na casa do Homem e descobri que o Lar era um monte de ossos… Este acontecimento marcou-me terrivelmente e responsabilizou-me como pessoa. Como foi possível um acontecimento destes tão perto de mim? Depois comecei a pensar nas pessoas, no “Nosso Homem” que somos todos nós, e daí estas histórias de pessoas concretas com uma dimensão colectiva. O Nosso Homem pode ser alguém que caiu no esquecimento da sociedade, pode ser um carteiro, um contrabandista, um autarca, um militar, um barbeiro, etc.. Alguém que é nosso no sentido de responsabilidade colectiva para com o outro. Este livro faz-nos reflectir porque um Homem morre sozinho na noite de Natal. 
Não deixa também de ser um livro diversificado com muitas pessoas, terras, viagens, temas, memórias, etc.. Não tenho muito jeito para ficcionar, prefiro anotar os factos e sujeitá-los à leitura de cada um. 
Não era minha intenção publicar estes textos. Mas a família, amigos e muitos leitores insistiram tanto comigo que acabei por aceitar o repto. Em boa hora o fiz, vendo agora a procura, principalmente nas beiras e na Zona arraiana de onde sou natural. Soube há tempos que a Sra. Emília de Jesus, a quem dediquei um texto, se encontra num Lar e que pede à enfermeira para lhe ler o texto sobre ela, “A VIÚVA DE UM MINEIRO”. Esse é o maior prémio que alguém pode receber, sentir que foi importante para a Vida de outra Pessoa.

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