sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Vozes da Terra- Manuel Corte

O que a seguir descrevo reporta-se à minha memória e tempos vividos na nossa aldeia Vila Mendo.
Na generalidade todos os residentes viviam daquilo que a terra dava, com pequenas excepções; algumas famílias dedicavam-se ao comércio bovino, ovino, caprino e suíno. Todos os terrenos eram cultivados, quer para plantações (batata, feijão, hortaliças…) quer para o cultivo de cereais (milho grosso, milho miúdo e centeio). O dia era inteiramente passado no campo e os meninos de tenra idade também acompanhavam os seus pais. A vida era alegre e feliz, mesmo para aqueles que pouco ou nada tinham.
Ao romper da aurora e ao cantar do galo todos despertavam para a jornada. Cada casa albergava em comum galinhas, coelhos, vacas, porco, burro, cães, gatos… Quem não conhece o ditado “se o mal não dobra galinha não prova”. Como falei de galinhas o seu papel era pôr ovos porque só era abatida em dias de festa ou quando o seu dono estava para partir. O porco era o bem fundamental na alimentação de cada lar; para além do presunto e dos enchidos sobejamente conhecidos por todos, havia alguma carne que se guardava na salgadeira, coberta por sal e que perpassava de ano para ano.
Analisemos o que a vida mudou!..
A água dos poços era tirada a balde pelos “picanços”, que mais tarde deram origem às tão cobiçadas “noras” e só nos anos 60 se implementaram os motores de rega que deram aso às moto-bombas actuais. Curioso e digno de registo: havia quem comprasse um ou mais burros para pôr à nora na Feira de S. João da Guarda (24de junho) e que vendia após as colheitas na Feira de S. Francisco (4 de Outubro); fica outra nota: havia quem pusesse dois “cambões” na engrenagem da nora a fim de engatar dois burros, o que fazia com que se algum quisesse parar o outro obrigava-o a andar!..
Havia tarefas no campo bastante árduas e que só podiam ser feitas pelo calor ardente do verão. As ceifas dos cereais eram feitas de forma geral por ranchos (4/5 homens e 15 ou mais mulheres e raparigas) e ainda as “camaratas” de homens (12/15) em especial do Azevo-Pinhel que tinham a particularidade de cortar o centeio com foice-gadanha. A acompanhar todo este pessoal andava o proprietário que abastecia de bebida o grupo e, ao mesmo tempo, ia pondo os molhos em “rolheiros”. De seguida era feita a “carranja”, o transporte em carros de bois que iria dar lugar à meda. Ainda registo a debulha do centeio ao “mangual”, mas em pequenas quantidades. Mais tarde surgiu a debulhadora (malhadeira), máquina de extrair o grão que, à época, era uma opção maravilhosa. Antes desta, de que temos um exemplar na aldeia, surgiram com rodas de ferro e motores a diesel “Lister” para se fazerem movimentar. A palha que saía dava lugar ao palheiro (amontoado em forma de cone que persistia ao temporal, em geral por vários anos).
Na “Eira” ou “Laja” eram necessários doze a quinze pessoas que se ajudavam mutuamente, cada qual com tarefas distribuídas, sendo de salientar os “vergueiros”, quatro a cinco homens que transportavam às costas as “faixas” de palha que davam origem à formação do palheiro.
Passemos à tarefa dos fenos: os lameiros eram cortados normalmente à gadanha marca “Sol” por grupos de três ou quatro homens que levavam cada um o seu carreiro ou "eito", seguindo uns atrás dos outros. Havia sempre alguém que dava o seu jeito especial no picar da gadanha, realizado com dois instrumentos de que a maioria se recorda: safra e martelo. O efeito do corte do feno dava de seguida lugar ao “espalhar, virar, emborregar e atar”. Faziam-se molhos de três faixas para dar lugar ao carregamento, transporte e armazenagem. O carro do feno, transportado por animais, equivalia a sessenta faixas. A denominada faixa era atada com nagalhos de palha devidamente humedecida, normalmente pela manhã, a fim de se tornarem mais macios e resistentes. A “emborregar” o feno, com o chamado ancinho, eram três a quatro pessoas para um a atar.
Se hoje achamos difícil o trabalho do campo, com todo o equipamento de que se dispõe, que seria se nos reportássemos a esses tempos… e não são tão longínquos, porque aqui me reporto aos anos 60/70. Voltarei a este espaço de memórias!
                                                          Manuel Corte

2 comentários:

Anónimo disse...

Sendo da geração de 80, adoro ouvir contar estas histórias, e imaginar que eram tempos apesar de difíceis muito felizes. Recordo com saudade os meus avós que também me contavam como era no "antigamente".
Gostei muito de ler, e fico à espera de mais "Vozes da Terra" e "estórias da terra", neste excelente blogue desta terra tão querida e com gente fantástica.

Júlio Manuel Antunes Pissarra disse...

Bonitas Memórias, Manuel! A pouca vivência que ainda tive desses tempos dizem-me que, realmente, a vida tinha mais Encanto. Gostei, igualmente, da forma como utilizas-te alguns termos do lexico rural.