(De forma inesperada e até surpreendente, Daniel Lucas discorre belissimamente sobre Vila Mendo e as suas gentes. Obrigado. Amigo.)
Teve início mais uma temporada dos “Festivais de Cultura Popular”, com Vila Mendo no palco principal, acolhendo a tradicional e encantadora Festa do Chichorro.
Em Vila Mendo, quando a palavra “chichorro” ressoa na boca dos nativos, não se fala apenas de um petisco. Fala-se da vida, de histórias e estórias, de forças silenciosas. O chichorro é mais do que uma iguaria: é um pedaço da alma daquele lugar, um manjar que transcende gerações e carrega consigo o pulsar da terra e o espírito dos que, com mãos calejadas, souberam preservar as raízes. Cozinhado na banha da gordura, nas panelas de ferro, no fogo, o chichorro guarda em cada pedaço o calor da terra e o carinho de quem o prepara. Apresenta-se como uma verdadeira experiência sensorial, crocante por fora, com aquela textura dourada que chama a atenção, e suave por dentro, revelando uma suavidade que se desfaz na boca. O sabor é fantástico, rico e intenso, um convite a saborear cada pedaço com o cuidado de quem aprecia o melhor que a tradição pode oferecer.
A sua origem é simples, como tudo o que é profundo. É um prato que surge da tradição da matança do porco, uma prática ancestral que não se limita a uma mera refeição, mas que se transforma num ritual, na comemoração da vida. O “chichorro do redanho”, nascido da gordura das massas gordas do animal, é o pilar dessa iguaria que se torna, na sua simplicidade, um símbolo de resistência e de ligação às origens. É um testemunho de camaradagem. Feito na partilha, com sabedoria e é o elo invisível que une as gerações. Em cada prato servido há uma passagem de conhecimento, um gesto de união que vai além do prato em si. É um legado, uma herança, como se cada pedaço trincado não seja apenas alimento para o corpo, mas uma promessa de preservação, de continuidade e uma oferta de aconchego para a alma.
Na Festa do Chichorro, a “capital” transforma-se. A Associação Cultural e Recreativa de Vila Mendo, com o apoio da autarquia, organiza um encontro que não é apenas gastronómico, mas culturalmente emocional. Não se trata apenas de degustar, mas de festejar a época e partilhar o que de melhor se tem. É um momento em que, com o chichorro na mesa, o tempo parece pausar. Não há pressa, não há urgência. Apenas as mãos que servem, os sorrisos trocados, os olhares que se cruzam. Entre debates sobre estratégias políticas do futuro próximo, o humor leve sobre o Benfica que voltou a perder e as histórias que se entrelaçam, como se a própria terra quisesse contar, em silêncio, tudo o que se passa e passou.
Saborear o chichorro é como abrir uma antiga caixa de música, onde a bailarina gira num movimento repetido, por vezes desafinado, mas irresistivelmente desafiador, evocando memórias e sentimentos que trazem à tona a presença viva de quem já partiu. É impossível não pensar nele(s) – nas mãos que tanto fizeram, nos risos que preenchiam, na dedicação que transbordava em cada pequeno gesto. Cada pedaço deste prato é como uma chama de uma vela que se acende, suave e persistente, a lembrar-nos que a vida que deixaram continua em nós. Não estão fisicamente à mesa, mas é como se estivessem, no sabor que nos envolve, no aroma que nos transporta, nos olhares cúmplices, nos sorrisos que ainda se trocam e nas gerações… O que fica não é só um prato, mas uma herança emocional que une um legado de vida que nunca se apaga, mesmo quando alguns dos seus protagonistas já não estão aqui para partilhar e servir mais uma vez à mesa.
A verdadeira grandeza da Festa do Chichorro está naquilo que representa. Encontra-se na amizade, na tradição, no cuidar. Ensina-nos que é na simplicidade reside a verdadeira riqueza da vida. O chichorro, como na vida, não se dissipa, atravessa gerações, num abraço hospitaleiro, numa memória que nunca morre, mas que se perpetua, dando-nos esperança… Esperança de construir pontes que liguem o ontem ao amanhã.
Ao meu amigo L.S; a ti; aos que estão! Com amizade.
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