Texto segundo o acordo ortográfico de Vila Mendo
Falar de Vila Mendo, e sobretudo de memórias, das nossas memórias, é falar de um tempo e de uma organização social que já não existe, ou melhor quase não existe, porque o espirito desta gente e desta terra perdura e perdurará certamente; em Vila Mendo a afinidade não é só familiar porque cada habitante faz parte da nossa família, em sentido restrito ou num conceito mais alargado, e a alma desta gente é maior do qualquer outra, Vila Mendo marca é seguramente uma marca de referência.
Nasci em Vila Mendo em 1966, ano de boa produção e boa colheita, e passei aí a quase totalidade da minha infância até à juventude, e mesmo quando por motivos escolares ou profissionais estive longe, apenas o estive em distância quilométrica, porque sempre estive perto, mesmo muito perto, estive lá em pensar; ainda hoje, em qualquer parte de Portugal ou do mundo, quando me perguntam ou digo de onde sou, eu digo orgulhosamente, sou de uma aldeia próxima da Guarda, Vila Mendo.
A vida entretanto encarregou-se de me fazer partir para outras paragens, voltando à origem sempre que me é possível.
Memórias e momentos
As memórias são muitas, e são um misto complexo, de saudade, de nostalgia, de ternura e de reviver um tempo que já não volta.
Lembro-me perfeitamente do corrupio de gente que se encontrava na rua ou nos terrenos de cultivo e das luzes ténues das candeias a petróleo, acesas em todas as janelas, de uma ponta à outra da aldeia, porque a eletricidade ainda não tinha chegado e as ruas e casas não tinham iluminação elétrica.
Os miúdos eram mais que muitos, para jogar à espada lua, ao fito e à bola, quando havia bola para jogar.
O sistema de entreajuda e a vivência comunitária era uma realidade, as malhas do centeio eram o expoente exemplificativo, ninguém trabalhava por dinheiro, mas por troca ou mera ajuda, quando alguém adoecia, era sentido como se fosse um dos nossos e lá vinham as receitas da avó ou da vizinha; desembaçar para as distensões musculares, cortar as bichas em vez da desparasitação, escalda-pés para a constipação, e carneira de porco para a papeira ou trasorelho ou tesorelho, como ali se dizia.
Noutros tempos em que o mundo era maior, o nosso mundo era Vila Mendo e pouco mais, mas nem por isso para nós era menor, pelo menos tinha o tamanho da nossa imaginação; os engarrafamentos eram de vacas em direção ao chafariz, para beberem água, à saída ou à vinda da pastagem, o tempo tinha os segundos mais longos, havia tempo para tudo, e desse maldito stress, garanto-vos que ninguém nesta aldeia tinha ouvido ou sabia o que era, e a maior parte de nós não distinguia um elétrico de um quiosque, e sabem porquê? Resposta simples, nunca tinha visto nenhum.
No inverno uma mistura de lama, água e bosta de vaca, cobria todas as ruas, era preciso ver bem onde se punha os pés. Esta mistura era petisco para as galinhas que na rua se alimentavam à socapa dos guardas do Marmeleiro, que quando vinham, multavam os seus donos; digo-vos, não sei como se conseguia identificar o dono destes animais, mas bastava perguntar de quem eram, e as pessoas diziam e assumiam, gesto de seriedade misturado de ingenuidade e medo.
Dos sabores, a merenda, posso hoje comer a melhor lampreia, mas não me sabe como sabia a dita, comida a meio da tarde, à hora da merenda como se dizia, está na hora de merendar, sentado no chão, com as vespas ou abelhas amarelas a aparecerem de rompante atraídas pelo cheiro presunto.
Lembro o primeiro dia de escola, os sinos a rebate e muitas coisas mais.
Lugares
De muitos lugares me recordo, mas seguramente o largo da moreira, cujo nome lhe advém do tempo que naquele largo, naquela praça, existia uma amoreira, não sei se de amoras brancas ou vermelhas; também largo do chafariz, é aquele lugar que mais marca, porque era ali que pulsava o coração da aldeia, servia para lugar de tertúlia, como ponto de encontro, ponto de encruzilhada e quase passagem obrigatória, já para não falar da água que em mais lado nenhum me sacia a sede como aquela,
Uma Pessoa
O meu pai, Armindo Pereira, se por outro motivo não fosse, porque me deixou cedo demais, porque não nos despedimos e porque não acabámos de conversar; mas, variadas referências, me levam a falar dele e olhá-lo como exemplo, homem simples, reto e íntegro prezava a palavra, para comunicar e gracejar, honrava a palavra. Via nele uma grandeza de alma. Com ele aprendi o valor das coisas e da vida, entendi o que é ser generoso, reto e sincero e depois da sua partida aprendi a dar outro valor à vida.
Passado, presente e futuro
Para falar de futuro é preciso falar do passado, penso que não será nenhuma blasfémia se eu disser que Vila Mendo e toda a freguesia de Vila Fernando, sempre pensou pequeno, faltou sempre ambição coletiva e nunca soube aproveitar o facto de estar próximo da Guarda, está à distância tempo de 12 minutos, eu lembro para quem conhece, que 12 minutos é o tempo que vai do estádio da luz ao estádio de alvalade em hora de trafego médio, ou seja em termos práticos Vila Mendo é periferia da Guarda.
Perdoem-me a ousadia, por mais que custe ler e ouvir, à nossa terra faltaram políticos locais à altura dos pergaminhos do lugar. Já fez mais pela localidade a iniciativa associativa de cariz local, de que é exemplo a Associação Cultural e Recreativa de Vila Mendo do que qualquer politico, que seja da minha lembrança.
Em pleno século XXI haver uma aldeia, e repito, às portas da Guarda, sem saneamento básico, água e esgotos é uma vergonha, em termos um bocado caricatos é o mesmo que dizer, posso efetuar pagamentos eletrónicos na sala, mas se não tiver fossa sética, tenho de ir baixar as calças, defecar, atrás de uma giesta, que vergonha! Qual é a empresa ou empresário que com condições destas se quer ali instalar!
Desde sempre esta terra assentou a sua economia na pecuária, agricultura e no seu comércio, e eu estou convicto, que esse terá de ser o seu futuro. Urge repensar novas formas de agricultura e novas formas de divisão da propriedade agrícola, poderá demorar décadas mas o tempo encarregar-se-á de me dar razão, só um projeto âncora com este cariz pode dinamizar Vila Mendo.
A importância de um lugar mede-se pelo seu capital humano, e quanto a isso tenho a certeza que Vila Mendo vai continuar a ser grande.
Vila Mendo, 7 de Agosto de 2012
5 comentários:
Belo texto e bela reflexão.
Muito bem, Sr, Presidente!
A alma e o sentir da gente de bem é coisa rara nos tempos que correm.
Um abraço ribatejano;
M. Carmo
Belas memórias as do Acácio. é bom as pessoas recordarem o passado e dar a conhecer aos jovens tempos que não conheceram. a ver se mais gente colabora neste recordar de tempos idos. muito bem
Concordo plenamente: muito boas as memórias do Acácio, aliás como foram as do Pereira, do Júlio, da Maria Alice Nina, do Mário. Várias outras pessoas já foram desafiadas. Esperemos pelos seus contributos.
É sempre reconfortante e agradável conhecer a visão que outras pessoas têm da nossa Terra. Assim, melhoramos, não só, o conhecimento que temos relativamente a essas pessoas, mas principalmente em relação a Vila Mendo. Gostei.
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