(Publicado originariamente na edição do Jornal A Guarda do dia 1 de Agosto)Uma das características (incaracterísticas) de ser do nosso país é a deferência com que uns muitos tratam uns poucos, que são cada vez mais… A forma (em jeito, mas só em jeito, tantas vezes) de respeito para com o Outro- algo profundamente valorativo e garante de um viver em comunidade superlativo- torna-se, não raro, num exercício de fingimento e até ressabiamento, ou num lastimoso e pesaroso acto de assunção de uma inferioridade pretensa.
Falamos da maneira como a palavra “doutor” serve para estabelecer proximidades, intimidades e afinidades, que mais não são do que diferenças e distâncias e estatutos no relacionamento e no tratamento mais ou menos formal, mais ou menos informal: se alguns há que o fazem por verdadeiro respeito (e por tal nada a referir, embora pudesse ser alvo de análise), outros há que o fazem simplesmente (sem que seja nada simples) por querer agradar ao tal doutor e assim obter qualquer vantagem, nem que só a simpatia da conversa de circunstância, que serve também para demonstrar aos presentes e ouvintes que se tem conhecimentos e contactos de monta com pessoas renomadas, logo influentes (seja aqui a influência o que for).
Portanto num audível “o doutor isto, o doutor aquilo” estabelecem-se logo quatro (?!.) “camadas estatutárias”: em primeiro, o próprio do doutor- o mais reverente e nem sempre deferente; em segundo, o que o intitula- que por chegar à fala com vários que tais, se considera quase como um deles e disso faz tenção e menção de o demonstrar de bem viva voz; em terceiro, os que não conhecem o doutor- o que tanto desejariam, e se contentam por conhecer aquele que o conhece (é que nunca se sabe quando dele se pode precisar); em quarto, aqueles que não fazem caso- destes acasos costumeiros e desanimadores e por tal são, muitas vezes, vistos de soslaio e desaprovados pelos outros todos, quais seres estranhos e esquisitos.
É claro que na “classe dos doutores” também há particularidades: uns fazem questão de deixar bem vincado que tal epíteto não consta do seu nome, repetem-no uma e outra vez e ficam até incomodados; outros já se deixaram vencer pelo cansaço e desistiram de corrigir os interlocutores que não ligam meia a tal apelo (um doutor é um doutor, mesmo que o próprio não queira!); em terceiro (e teme-se que sejam consideravelmente bastantes) aqueles que fazem questão e gosto de serem assim nomeados e tratados, com altivez até. Em quarto os que “não sendo” doutores querem ser assim tratados… admirável mundo… velho.
Neste tratamento relacional (às vezes sem relação nenhuma, ou pelo menos, substancial) também se utilizam o engenheiro, o professor, o arquitecto, etc., etc. e o efeito é o mesmo, embora doutor… seja sempre doutor. E mesmo aqueles que não atendem a estas cortesias vazias, de quando em vez, já se lhes ouvem tais palavras- tal é a “pressão comunicativa”!
Singularidades quase que portuguesas. Na Guarda são-no ainda de forma mais visível, ou pelo menos, parece. Conseguimos ser afirmativamente capazes em tanto; mas também conseguimos desembaraçadamente aprimorar inconsequências e aspectos medíocres, maldizentes, malfazentes… Haverá mesmo uma identidade do Ser guardense, mais própria, mais recôndita, mais imperscrutável… da do Ser português?
“Boas férias, doutor”. (ups!).