José Afonso Vieira filho das nossas terras -Vila Fernando- preocupado com a desgraça que se abateu sobre o nosso rio Noéme, escreveu uma estória/história sobre ele. Faz-nos reflectir sobre como tratamos os recursos naturais e, mais grave ainda, como tratamos as pessoas a expensas de um pretenso desenvolvimento. Impõe-se a pergunta: e o rio, car****?.. O "Chá do Noéme" por José Afonso Vieira.
Zé Chibas.
Carrancudo, de cigarro de enrolar ao beiço, pau de amieiro entalado no antebraço, pastor de cabras, desde os 12. E já lá vão 40!
Ele por ali anda, com 7 bichos cabrinos, magros, sebentos, e com as caganitas prezas nas patas traseiras, que fazem a vez de badalos. Apenas não chocalham.
Há um moinho ao longe, podre, velho, sem telhado e sem roda. Em vez de pão e moleiro, tem como companhia pedras caídas, telhas partidas, e silvas.
É Janeiro, e um lençol branco percorre a veiga, rente ao verde acastanhado da erva.
Faz um frio seco.
As Silvas e as giestas fazem de raids a um caminho de terra batida, principal via da aldeia, no tempo do Rei D. Sancho. Que por aqui andou também. Não a guardar cabras, mas de mula, a delimitar o concelho da Guarda. Dizem. Não sei se é verdade.
O caminho, dado a antigas realezas, serve agora para as cabras, algumas vacas, ciclistas citadinos e teenagers endiabrados montados em mulas mecânicas.
Ainda serve.
Quem não serve são as águas do Noéme, que se colam e serpenteiam o caminho.
- O Rio desta cor só nas enxurradas.... desta cor só nas enxurradas ..e era quando as havia. – Vocifera o Zé Chibas, apagando a beata molhada com a ponta do pau de amieiro, na erva branca da geada.
- Anda cá, só para veres.
Vou, mais obrigado, que por livre vontade.
Galgamos umas silvas, uns juncos, uma bosta de vaca a fumegar, e paramos ao pé da água, que corre branda, espumosa e gorda.
O Zé agacha-se e com a cova da mão e leva a água ao meu nariz. – Cheira, cheira, e depois diz-me se tenho, ou não, razão.
Cheiro. Viro a cara para o lado. O odor é intenso. Uma mistura de tripas podres, químicos, curtumes, vísceras, carne putrefacta. Tudo banhado numa água de cor castanha avermelhada.
- Os filhos dum c..... Deviam chafurdar aqui e obrigá-los a beber este cházinho! - remata o Zé guardador de cabras e não de sonhos.
-Pois…. digo eu.
O pastor afasta-se com passos longos e alavancados pelo cajado.
Olha o rio com um ar desafiador e impotente.
Junta-se ao rebanho.
Assobia.
Três cabritos e uma cabra com tetas ovais vão ter com ele.
Todos, olham-me como um estranho, apesar de já conhecer o Zé há muito tempo.
Do canto do olho vejo-o retirar uma garrafa de vinho do bolso do casaco e beber um trago, limpando os beiços à manga da camisa.
E, lá, ao longe, na neblina da veiga, enchendo os pulmões com bafo de cabra e de nevoeiro, elevando o cajado o Zé ainda grita:
- Eu ainda me amanho com o tintol, e as cabras, caralho?
Uma nuvem, amedrontada, afasta-se e deixa brilhar um sol ajaneirado, de cor de vaca jarmelista.
Desta vez, talvez por nojo, ou por respeito ao pastor, o sol não se amanhou com o Noeme.