(Publicado originariamente na edição do Jornal A Guarda do dia 05 de Dezembro)
A nossa vida rege-se por um sem fim de acontecimentos; mais ou menos significantes, mais ou menos indiferentes… As nossas vivências- condicionadas e condicionantes- são extremamente polarizadas e matizadas na afirmatividade ou na negatividade, numa contradição de sempre e para sempre. Delas, só quase nos lembramos (e damos importância) ao extraordinário, ao fora do comum, ao diferente, ao não normal. No fundo, só damos valor ao exótico.
Como tal, vivemos no mundo dos extremos: das coisas espectaculares e fenomenais, ou das coisas mais deprimentes e degradantes. Nos entretantos perdemos e não valorizamos o resto, que é (ou pode ser) tudo. Esse Tudo, que é tudo aquilo que é banal, normal, habitual, natural, comum, evidente, ordinário, diário… tudo aquilo que não nos chateia, não nos preocupa, não nos causa problemas. Aquilo tudo que não nos interroga, como se não trouxesse respostas, nem informações, nem referências ou inferências.
E é esse Tudo que acontece a todos os instantes. A todos os momentos. Todos os dias e que retorna uma e outra vez; e ainda outra, e outras…
A nossa sociedade não sabe falar das coisas comuns (e quando o faz, fá-lo de forma inusitada e desanimadora e depressiva e…). Precisamos de dar um sentido-sentido a essas Coisas, que são as coisas que, em instância última, podem ser centrais, indispensáveis na busca da essencialidade (talvez) perdida do ser humano. Precisamos perguntar por elas, e deixar que elas nos interroguem, nos dêem as respostas, ou pelo menos respostas apontando caminhos que nos ajudarão a dar significação à dura caminhada da existência.
Precisamos trazer essas coisas banais, triviais, habituais…. para fora, dar-lhes espaço; o espaço que aliás elas já têm, mas que nós não lhe damos porque assoberbados pelo contínuo extraordinário que nos aprisiona numa atenção-desatenta castradora.
Precisamos espantar-nos, reencontrar o espanto; o espanto que já existiu e que nos moldou e nos definiu; e nos fale do que é, do que somos, do que queremos ser enquanto humanidade e enquanto indivíduos.
Necessitamos, como a boca de pão, do espanto, desse espanto primordial que (re)configurará a nossa realidade, as nossas relações e as nossas ralações. O espanto… de um sorriso, de um elogio, de um sítio, de uma acção, de uma palavra, do silêncio, do ruído (de fundo), da pessoa e daquela pessoa e das pessoas, e de tantas e tantas coisas simples… É que, na maior parte do tempo, quando parece que não acontece nada… acontece Tudo.
Porventura, necessitamos de mudar de orientação: do exótico para o endótico.