(Publicado originariamente na edição do Jornal A Guarda do dia 12 de Setembro)
Vivemos num mundo animado. Moderno, dizem; mas não muito diferente dos tempos ditos antigos. Pese embora toda a evolução, nomeadamente tecnológica, o Homem é profundamente dramático, simbólico e mitológico, precisa (como a boca de pão) de espectáculo, fantasia e sonho e paixão e… Ontem. Hoje. Sempre (?). O Homem é profundamente contraditório, define-se na contradição permanente e pungente.
E o que é o futebol senão tudo isso mesmo? É tudo isto, aquilo e muito mais. Aprisiona-nos e liberta-nos, limita-nos e transcende-nos, desorienta-nos e objectiva-nos…
De facto, o futebol- na sua natureza eminentemente dinâmica, interactiva e comunicativa- possui toda uma estética, que além da beleza intrínseca do jogo, poderíamos denominar de estética relacional: uma outra beleza (quase uma certeza) de comunhão com o outro que prefigura um tempo e um espaço de união fraterna (eternamente utópica). Um tempo e um espaço que aumenta e diminui, se contrai e expande numa percepção de percepções- impercepcionáveis por vezes. Uma experiência geradora das maiores emoções e celebrações, das piores frustrações e ruminações: tudo num jogo de 90 minutos. Uma relação quase poética, ligada e interligada, entre Sujeito (os actores do jogo) e Objecto (o próprio jogo), fruto ele próprio das várias relações estabelecidas entre os sujeitos que lhe dão forma e cor e alma.
O futebol permite uma igualdade, uma colaboração (quase que perene) entre a equipa e os espectadores numa relação colaborativa, simétrica e até mimética. Existe uma convergência na(s) finalidade(s) dos objectivos e nas nuances para se alcançarem, e que ancoram todo um conjunto de valores comuns que constituem, ou pelo menos produzem ideias de um património (vivo), até de uma identidade que nos define e imprime uma (certa) presença no mundo. Permite que- desde as pessoas com os afazeres mais importantes até às mais simples, dos sabidos aos desentendidos, dos novos aos velhos e de um sem número de categorizações- todos estejam numa base igualitária durante aquela hora e meia.
Todavia também é claro que o futebol não se afirma só pela beleza. Também é fealdade, mesmo horror: no tom usurpador e até castrador, na violência que mina a sua essência, na corrupção (o dinheiro que à volta gira e gira assim o “impõe”), no engano e desengano, nas visões sectárias e improducentes, na discriminação e omissão, na irracionalidade… uma e outra e outra vez presentes.
O futebol é tudo isso. Mas, talvez e sobretudo seja uma experiência de contradição (total?) que nos deixa de consciência às avessas, de mal connosco próprios e com o mundo, neste mundo tão igual ao resto do mundo todo; e ainda assim embrenhados e empenhados em construir, ou pelo menos contribuir, para o melhor dos dois mundos!
Futebol, estética e poética…