(Publicado originariamente na edição do Jornal A Guarda do dia 26 de Setembro)
Se há invento portentoso na jornada da humanidade é o da escrita. Transformar o som da linguagem em símbolos perceptíveis e significantes, transpor o pensamento em registos observáveis e verificáveis é de um assombro sublime, que imprime a marca primeira (?) da excepcionalidade (?) humana. A realidade e o sonho, o anseio e o devaneio, a paixão e a desilusão, os quereres e os fazeres, o Eu e o Nós inscritos; no tempo que há-de vir. É a escrita a dar origem ao escritor, que lhe dá início a ela…
De facto, o escritor escreve e descreve e reescreve o mundo. E nesse processo de contínua transfiguração que é a escrita, reescreve-se a ele próprio e às suas aspirações (existenciais, também e sobretudo). Escreve para si; às vezes de si; quase nunca para o outro. É o outro que na busca de si o encontra a ele- escritor. E todo um mundo novo se abre a quem o lê, a quem o reflecte e assim inflecte a trajectória da (sua) existência.
O escritor, ao (tentar) criar primeiramente para si mesmo, é um egoísta portanto. Que se quer admirar a ele próprio como único e diferenciado. Mas nesse egoísmo, paulatinamente, também se pode encontrar uma centelha, um espanto de generosidade quando quem o decifra e reflexiona abre caminhos de transformação- individuais primeiro, colectivos depois: um egoísmo-útil.
O escritor ao querer ter uma unidade de pensamento, uma unidade da sua acção, entra em profunda contradição: quer dar ao mundo tudo o que o mundo não tem, mas que ele também nunca lhe poderá dar. E é nesta luta de contrários e contrariedades que está a linha quase que imperscrutável do génio e da genialidade.
Quem escreve é um roubador. Rouba as palavras, as frases e as ideias: entremeia-as coloca-as noutros pontos de vista, confere-lhe uma estética e uma poética, por vezes e se houver arte engenho, mas não cria nada de verdadeiramente novo. Está tudo criado, e ainda assim, tudo por recriar (o que em última instância já pode constituir criação)!..
Realmente são poucos (até na história toda da nossa Caminhada Comum) aqueles a quem podemos chamar com propriedade de Escritores. Aqueles que conseguiram ser corpo e alma e alento para se originarem mudanças verdadeiramente transformativas nas diversas sociedades e no próprio mundo. Aqueles que com os seus Dizeres operaram Fazeres- efectivos e afectivos, produtivos. Nem todos os que escrevem são escritores, e nem todos os que se dizem tal escrevem (muito menos inscrevem).
No fundo, somos quase todos escrevedores, com talentos díspares, é certo, mas se bem que tentemos (e muitos tentam-no a vida toda) provavelmente nunca alcançaremos aquele lampejo de brilhantez com que deixaríamos uma marca, uma presença na Vida (dos outros).
Ainda assim, vamos escrevendo- muito ou pouco, bem ou nem tanto, mais profunda ou menos profundamente- esperando não que multidões nos leiam, mas que alguns nos reflictam.
Quem escreve é um Roubador: rouba a dor-de-si e entrega-a, sem beneplácito, a quem o lê. Egoísmo-útil?!.
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