segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

“É preciso tanta porcaria por causa dum…”

(Publicado originariamente na edição do Jornal A Guarda do dia 22 de Dezembro)

Num destes dias gélidos- como se a adjectivação quisesse demonstrar uma absoluta extraordinariedade, que não é- portanto, num destes dias frios passando-se na rua/travessa entre o largo dos correios e o jardim, um varredor de ruas no empunho de um pequeno sacho tentava arrancar as ervas entre a parede da escola Augusto Gil e os paralelos; afazer custoso e minucioso este. Por entre o estalido do metal no empedrado, curvado e compenetrado ouve-se dizer: “É preciso tanta porcaria por causa dum…” e rematou a frase tal como a tinha iniciado: de rompante. Não olhou. Nada disse mais. Cabisbaixo, continuou. Tal como o andante.
Em que pensaria? A quem se referiria? Que torrente de pensamentos o atulhariam para deixar que eles escorressem para o linguajar? Que situação o atormentaria? Seriam os chefes ou os colegas ou os amigos ou a família ou alguém que passou, ou tantos outros ous?!. Se calhar, pela tonalidade ouvida nesse instante, o tormento não fosse muito: uma espécie de “enfim”, de quem já deixou passar e de pensar a questão, e agora já está noutros propósitos. Talvez as pessoas simples (ousadia esta de achar da simplicidade dessa pessoa) nas suas despretensões não se atormentem tanto como uma boa parte de tantos outros. Como se aquela inquietação momentânea se quedasse nisso mesmo, como se a varresse, a arrancasse dos seus pensamentos e dos seus lamentos. Se calhar porque a vida também é simples se a fizermos simples, se a despirmos das complicações das gentes ditas complexas (ou antes complicadas?). Aquela pessoa que pareceu admirada com a “porcaria” que alguém supostamente fez, quando ela passa a vida a varrer a porcaria nas ruas; talvez porque as pessoas simples dão mais valor às atitudes censuráveis das outras gentes do que à sujidade física; talvez ao contrário das pessoas complexas que se enojam com a porcaria, mas não tanto com as acções prejudiciais aos e dos demais; talvez…
Talvez aquela pessoa tenha pressa de deixar de pensar naquilo, tenha pressa de perceber, de resolver essa “porcaria” e não tenha pressa da vida. Da vida simples, despreocupada mas importada, real mas ainda assim sonhadora… Ao contrário das pessoas complexas que se enovelam de pressa na vida. Como se ela- a pressa- tivesse um efeito profundamente transformativo na realidade. Como se ela- a pressa- as fizesse pular por cima da própria sombra e as tornasse um outro eu, num outro eu… Talvez porque se achem perdidas delas próprias no emaranhado de pensamentos caóticos que as atormentam e cuja substância (se a houver) e significação desconhecem ou não encontram; fazendo com que estejam continuadamente a pensar sem pensar e a pensar numa coisa outra, num mundo outro, numa vida outra. Talvez a humanidade se (re)encontre nas pessoas simples e a inumanidade nas pessoas complexas. Talvez a tentativa de destrinça entre pessoas simples e complexas seja um absurdo retórico e maniqueísta, sem sentido e desprovido de qualquer razão ou lógica. Talvez precisemos simplesmente de nos questionar se “é preciso tanta porcaria por causa dum… “ Talvez.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Gentes de Cá

António Júlio; Manuel Joaquim; Maria do Carmo; Manuel Corte; Luís Filipe Soares; Sara Soares; Andrea Soares