(Publicado originariamente na edição do Jornal A Guarda do dia 20 de Novembro)
Talvez o Homem seja profundamente complexado; que advém (?) de impulsos, ou de um impulso (inconsciente) de provar e de se provar como ser arquitector, construtor, fazedor face à sua condição de criatura, portanto criada e feita. E, por tal, busca e deseja ardentemente por todos os meios ser fazedor; criador, porque não se criou, não se originou a ele próprio. Será essa a causa da instabilidade urgente e sempre presente e sempre pungente do mundo? No fundo, uma desenraização com que somos assolados e atolados e dela nãos nos podemos livrar como humanidade; ou podemos? Uma instabilidade (já enraizada) que culmina, uma e outra vez, nas maiores desgraças, nas maiores monstruosidades ao longo da história.
Nesta “complexação-instável” (que será também uma vergonha-enredada) a técnica- a tecnologia agora- assume, ou poderia ou quereria assumir, porventura, um papel de estabilização no pensamento-acção do Homem. E consegue-o?
Talvez na tentativa de compensar e ultrapassar esse complexo, a humanidade tem utilizado a técnica e a tecnologia a uma escala que, hoje, está num patamar tão incrível que no amanhã será imensurável. A quantidade de dispositivos e produtos tecnológicos associados que nos auxiliam, quiçá sejam uma forma de o Homem se compensar a ele próprio pela sua não participação no surgimento primeiro; por não se ter planeado a ele mesmo e à sua natureza, a partir da razão… E se muitas vezes a tecnologia nos ajuda e nos permite a tal estabilidade, globalmente e numa análise mais fina, mais funda, ela é (também) responsável pela desestabilização do mundo (que já esteve mais longe de ser absoluta). Nessa perspectiva, como que nos diluímos nos artefactos criados. E deixamos de ser nós sem nunca sermos os artefactos. Ficamos como que numa terra de ninguém, num limbo sem referências ou inferências que nos respaldem como seres simplesmente (!) humanos.
Se atentarmos, por exemplo, na inteligência artificial tão premente e tão preocupante pelas possibilidades que (já) se vêem e pelas imensidades que se antevêem, há como que um paradoxo-primeiro: a inteligência artificial- a coisa criada, chamemos-lhe assim- torna-se criadora. Ora, se ecoa seminalmente no inconsciente da humanidade uma vergonha, pela nossa natureza não fabricada pela razão; e se sempre quisemos ultrapassar (até mesmo “matar”) Deus- o Criador- agora, criamos uma coisa que nos vai recriar. Nunca conseguimos fugir da sombra do Criador e na ânsia de lhe escaparmos originamos algo que vai suplantar quem lhe deu origem (o Homem): a criatura supera o próprio criador, algo que o Humano nunca conseguiu com o seu Autor… Será que à conta de tal, iremos assistir num amanhã a que a Criação origine uma reCriação que se tornará descriação- total, fatal?
Não sabemos bem o que nos espera, mas já sabemos o que nos desespera: o pensar na possibilidade do ser humano na Criação (portanto no mundo de todos os seres vivos) ser um seu excesso! E como tal, os excessos tendem a ser eliminados. E o que nos angustia ademais, é prever/saber que será o excesso a eliminar-se a si mesmo, em movimentos-evoluções autofágicos… Tormento rumoroso no silêncio de nós.
Pessimismo azucrinante? Eventualmente. Mas ainda e sempre com uma esperança ardente de que o Criador (se for o caso) “compareça” e se compadeça…
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