sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Vila Mendo nos anos 60/70- O Desporto- Zé Domingos

Preâmbulo
As minhas vivências de vilamendense estão truncadas pelos largos períodos de ausência. Aos dez anos, em setembro de 1967, parti para o Telhal e só voltei a beber da água fresca do chafariz (as melhores águas naturais canalizadas das redondezas… segundo o Dr. Crespo) nas férias grandes, em julho de 1968. Este meu fado manteve-se até ao ano de 1975… Vila Mendo só nas férias de verão! Efetivamente, só de julho de 1975 a 79, passei a maior parte do tempo na nossa terra, ao estudar na Guarda… e, em outubro de 79, emigrei para a bonita região autónoma dos Açores… a nossa aldeia passou para escassos dias de férias.
Sou pois mero narrador não participante de algumas das bonitas páginas que compõem o livro da vida daquela que, orgulhosamente, chamamos VILA MENDO.
Outra condicionante à minha participação em algumas vivências do antanho foi o velho costume que obrigava as crianças e jovens com menos de 15 anos a recolher ao doce lar, logo após o pôr-do-sol. Os mais velhos, cobertos por manta ou casaco, faziam trabalhar o cinto nas pernas do aventureiro  que fosse apanhado, durante a noite, a circular sozinho pelas ruas! Eu vingava-me na leitura de cordel!!! Este uso desapareceu com a emigração… os maiores ficaram sem colegas de brincadeira… a necessidade “adultou”, precocemente, os mais novos!!!
 Antes de entrar no tema principal da incumbência, vou apenas relembrar alguns factos/costumes que ocorreram durante a minha estada no nosso torrão e que eu considero marcos importantes na história da nossa gente.
A emigração: a última família a partir para o Brasil, no inverno de 1963, foi a do senhor Porfírio (eu herdei do Zé Carlos a caneta de aparo e uma ardósia), mais tarde também partiu uma filha do senhor Manuel Domingos e foi o meu tio Manuel Mateus Corte (1965), o primeiro vilamendense que, de comboio com um passaporte de turista, iniciou a debandada de gerações  que percorreram a Espanha a pé, em busca do eldorado francês. O primeiro emigrante a falecer em França, foi o Horácio Bragança (1967/68?)… vítima de electrocussão ao bater com uma picareta num cabo eléctrico enterrado numa rua de Paris. O aparecimento da primeira vaca de leite de raça Frísia, adquirida pelo meu tio José Domingos (foi tema de muitas conversas depreciativas, uma vez que não viam no dito animal forças para puxar o arado… a corte foi, durante algum tempo, local de peregrinação para ver aquele “monstro”)… depois foi a adesão total àquela raça vacum... o “petróleo branco” da nossa terra. A aquisição do primeiro tractor na localidade deve-se à família Pissarra em 1962(?) (já havia tractores na Quinta do Crespo). O novo traçado da estrada para Vila Fernando apareceu em 1972… a sua “pintura a preto” foi obra camarária do então presidente Abílio Curto. O arranjo da capela e a construção do campanário aconteceu por volta de 1971/72, o mestre de obra foi o senhor António Pissarra (pena que se tivesse queimado o retábulo de madeira torneada que cobria toda a parede do altar). A recuperação da escola e do espaço que hoje serve de sede à Associação é de 1975 (obra dos soldados de abril acantonados na casa da senhora Augusta). A luz elétrica chegou em 1979 (a Dra. Maria Pissarra “botou” o discurso e eu, a mando do Manuel Silva, “ botava” os foguetes). O célebre aparecimento de maços de tabaco americano na quinta de Vale Carros e que levou, possivelmente, ao vício pela nicotina de muitos dos nossos conterrâneos (1975)… nunca a criançada se sentiu tão importante … fumar Marlboro… só os de Vila Mendo! A quezília que a nossa gente manteve com o Dr. Crespo por causa das águas da “Balça”…venceu o nosso povo… a heroína foi a minha madrinha Adoração. O papel do senhor Joaquim Pereira na reprodução do gado vacum castanho e depois traçando o castanho com o frísio, quando, a troco de uma maquia de centeio, “tornava feliz” o seu boi de cobrição! Em 1974, sob a batuta do padre Manuel, a juventude de Vila Mendo entrou em força nas atividades culturais de Vila Fernando… o Manuel Silva foi um dos actores principais… e eu, por ter chegado atrasado devido aos exames nacionais do 5.º ano, fui o responsável pela feitura dos cenários.
 Relativamente aos costumes, saliento o hábito de obrigar o jovem estranho que namorasse uma das nossas lindas meninas… a “pagar de bicas”… e havia acordeão. O tocar das matracas na Semana Santa acompanhadas com os gritos “é para o terço”. O vestir do pinheiro com a cheirosa “bela luz” e levantá-lo, com a ajuda dos ranchos de ceifeiros, no dia de S. Pedro. O levar aos “gambuzinos” o jovem que vinha para a nossa terra. De acordeão percorrer as nossas ruas acompanhando os nossos jovens “apurados para a tropa” e que, de cigarro no canto da boca, num desafio ao respeito maternal, marcavam a entrada na vida adulta. No dia de casamento, ao longo do percurso da capela para o local do jantar, as crianças colocavam numa cadeira ou num banco o seu prato para recolher guloseimas (rebuçados… uma moedita) que os convidados ali depositavam. O assalto às cerejeiras (ai que saudades)… a cereja foi a fruta da malta. A criançada sentada na escadaria dos meus tios para ouvir o incansável senhor José Bragança contando estórias de encantar que nunca terminavam…alguns desses contos servem-me para motivar os meus alunos. As malhadas que, a partir de março, serviam de guarida aos rebanhos e, em simultâneo, fertilizavam os terrenos; ah, não posso esquecer quando, sobretudo aos domingos, se ia à ribeira banhar os corpos nus e pescar…e, de quando em vez, também cobras de água!! Por fim, recordo o espírito de cooperação/comunhão que se vivia na nossa aldeia, quando chegava a debulha do centeio, sob o lema: “ajudo para depois ser ajudado”. As malhas mais concorridas eram as dos Pissaras (a troco não de ajuda, mas de giestas para o lume) e, por razões óbvias, as debulhas pertencentes às famílias com jovens para a palha e a do palheireiro.
O Desporto
Relativamente ao… desporto… os divertimentos de adultos, tenho de ter em conta que a geração anterior à minha emigrou para a França tinha eu menos de dez anos, logo sou parco em lembranças. No entanto, lembro-me de ver jogar à bola num campo no "Espinhal" e de ouvir falar de grandes cabazadas sofridas em Vila Fernando e em Albardo. Recordo ter ouvido que, após um jogo de futebol, em Albardo, (quase todos os jogos terminavam à pedrada) o Albertino, filho do senhor Porfírio, ter golpeado um dedo a um sobrinho da professora que lecionava na nossa escola… e com medo não foi à escola na semana seguinte. Quando aparecia uma bola (mesmo de plástico), era festa para a criançada… o luar de agosto era aproveitado até às tantas… no largo da escola. Por altura do exame da 4.ª classe, que era feito na Guarda, os mais velhos pediam aos alunos uma bola e se possível de couro. Estas jogatanas originaram brigas familiares resolvidas… para jogares, só descalço. As botas de couro da escola, duravam menos de um mês! As sapatas de pano espanholas apareceram no início da década de 70.    
Continuar os estudos começou a generalizar-se a partir de 1967, até ali, estudar só os filhos da família Marques/Pissarras. Com os estudantes e sobretudo os seminaristas, (o seminário era, na altura, a melhor escola de formação desportiva) o desporto, quase em exclusivo o futebol, introduziu no mapa do futebol, o nosso Vila Mendo. A habilidade futebolística refinou-se na “Tapada Velha”… num lameiro, (às escondidas do dono) e sobretudo no largo da escola. Também se jogava nos caminhos, pois carros era coisa rara na nossa aldeia. A equipa adversária era recebida, no início, na Tapada Velha e…acabado o jogo… vinha a pedrada. Por falta de campo “condigno”, a nossa equipa jogava quase sempre fora de casa. A deslocação era feita a pé… coitado de quem, durante o jogo, sofria mazelas… o caminho do regresso tornava-se tão longo! Eu que o diga, vim do Marmeleiro arrastando uma perna até casa e o meu primo Tó Terras veio do Barracão a sangrar do nariz… tinha a “cana” partida!!! A terra mais difícil de derrotar foi a Quinta de Cima… tinha um campo bastante inclinado e… as balizas muito altas!
 Em 1973, na “Laijinha”, aproveitou-se a movimentação de terras para o traçado da estrada para Vila Fernando e construiu-se, com a ajuda das máquinas da quinta do Crespo, num terreno da família dos Marques/Pissarra, um campo de futebol. Ali se fizeram vários jogos, destaco, e com bastante assistência, os embates, com a Santa Ana, Vila Garcia, Vila Fernanda, isto no verão. Outros jogos houve, durante o ano letivo, mas, por estar no seminário, nada sei. O milagre dos maços de tabaco americano em Vale Carros, em 1975, para além ser a origem do vício da nicotina levou também, como represália, à morte, pela lavra, deste campo de futebol. Na rádio Altitude, passou o primeiro comunicado da juventude de Vila Mendo que, numa linguagem politicamente correta para a época “atacou” quem estragou o nosso local de divertimento. Foi-se o campo… ficou o jeito demonstrado pela nossa juventude… e Vila Fernando aproveitou. Ainda recordo termos sido nós os primeiros a derrotar o Albardo no seu próprio recinto (4 a 1). A tática desse jogo… Zé Albino na “ponta parada”… e por aí marquei eu três golitos. Recordo também os torneios no Rochoso… sempre na final e sempre roubados… perdemos! A nossa maior goleada foi ao Marmeleiro (9 a 0), no Rochoso, num desses torneios. Vila Garcia e Barracão eram equipas a abater. Foram raras as equipas que nesse período nos “levaram à parede”. Depois passámos a jogar por Vila Fernando, nos campeonatos do INATEL que se seguiram até 1979, éramos 5 ou 6 jogadores titulares. Ficaram na memória os jogos na Mêda, em Escalhão e com a Estação da Guarda, que num domingo de muita chuva, jogando apenas com nove jogadores (cinco de Vila Mendo) lhes ganhámos. Nessa altura, ninguém da nossa terra se federou… não havia transporte. No entanto, nos domingo em que Vila Fernando não jogasse, havia sempre um carro que passava pela nossa terra para levar alguns “internacionais”…e,  por vezes, para homem do apito. O auge da fama de bons jogadores aconteceu em 1977, quando constituímos a equipa dos "Invictos", para o 1.º torneio de futebol 5 organizado na cidade da Guarda (foi o início do célebre torneio da Primavera). Participaram 64 equipas… nós ficámos em 2.º lugar e ganhámos a taça do “fair play”… as Lameirinhas venceram. No ano letivo seguinte, choveram convites para jogarmos em  equipas federadas.
Após a final dito torneio, fui convidado a ir mostrar a habilidade à Associação Desportiva da Guarda e, enquanto esperava pelo início do treino, brincava com outros atletas quando treinador grita comigo questionando-me sobre a minha presença… deixo logo a bola e… vai daí começou a época do atletismo. De 77 até 79, o Carlos, eu, o Pereira, o Manuel Silva e o meu primo António Terras, muitos quilómetros corremos. As festas de verão das aldeias passaram a incluir provas de atletismo com distâncias de 7 a 10 km. Só me lembro de não ter ido para Vila Mendo um primeiro lugar (nesse dia, quis estrear umas sapatas e o resultado… as unhas grandes dos pés para o lixo). Recordo a primeira prova de Vila Mendo, a corrida da casa do povo de Vila Fernando, a prova da festa de S. Francisco, a prova organizada pelo Inatel em Vila Garcia (ganhámos em três escalões), mas foram as três provas no Rochoso aquelas que me deram mais prazer de vencer. Ao nível da cidade da Guarda, os resultados não foram tão famosos… mas sempre nos dez primeiros.
Também em 1977, os Terras (o Tó, o Manel, o Zé e o Ismael) conquistaram o primeiro campeonato de xadrez por equipas da cidade da Guarda… fomos autodidatas nesta modalidade.  Representámos a Guarda nas 1.ª Beiríadas, em Coimbra, jogando xadrez. O Tó Terras continuou…venceu pelo menos um torneio em Pousade (na final venceu a futura campeã nacional Aida Ferreira), enquanto eu ganhava o torneio de ténis de mesa. O “pingpong” que apresentávamos era de grande nível, sobretudo o serviço que, apesar de cumprir as normas, era mortífero… a mesa da casa do povo de Vila Fernando era como se fosse “nossa” (minha e do Manuel Silva)!
Relativamente aos jogos tradicionais, ombreávamos com Vila Fernando (Sr. Carlos alfaiate e o Sr. Joaquim da gata eram os melhores na malha), pelo que representámos a freguesia em vários torneios, nomeadamente em Escalhão. A sueca, a exemplo de hoje, também era jogada… e como sempre “o bié-las ganhava ao sabias” (do Sr. Zé Bragança).
Claro que haveria muito mais para recordar… nomes para citar… episódios pitorescos passados no antes, durante e nos finais dos jogos, mas não quero melindrar ninguém…pelo esquecimento.
Uma coisa é certa, a rivalidade entre Vila Mendo e as outras aldeias não desapareceu, mas o desporto socializou-a e as pedradas deixaram de ser a forma “revolucionária” de correr com o adversário.


                                                                                         Zé Domingos

9 comentários:

Anónimo disse...

gostei muito da tua narraçao, com ela aprendi muitas coisas sobre essa terra e a sua gente. obrigada e vai continuando a contar cisas

Anónimo disse...

ricas memórias. É bom recordar. desafiem mais gente a colaborar...

Luís Filipe Gonçalves Soares disse...

Já várias pessoas foram desafiadas... umas têm e vão colaborar outras... não. De qualquer modo quem quiser colaborar está à vontade, agradecemos.

Manuel Silva disse...

Oi Zé!
Só hoje tive oportunidade de ler o teu artigo mas o Ismael já me tinha falado do mesmo durante a minha recente estada em Vila Mendo. É um desfiar de memórias, de vivências que fizeram parte do nosso crescimento.
Sem falsas modéstias e apesar da nossa permanência na terra natal se limitar às férias escolares, podemos afirmar que vivemos o período juvenil mais rico sob o ponto de vista cultural e desportivo que Vila Mendo conheceu.
Abraço.


Luís Filipe Gonçalves Soares disse...

Manuel: e como classificas este período actual, de há treze anos a esta parte com a existência da Associação?!.

Manuel Silva Gonçalves disse...

Meu caro Luís Filipe!
Fazes-me uma interpelação que, penso, se fundamenta na afirmação que fiz no post sobre o texto do Zé Domingos.
Deduzo que ao pretenderes a minha opinião expressa sobre o papel da ACRVM estabeleça um paralelo entre a realidade de hoje e a mudança "cultural e desportiva" verificada na aldeia há mais de trinta e cinco anos, período a que o texto se referia. Continua...

Manuel Silva Gonçalves disse...

Continuação...
Obviamente que não é comparável! Ex: a população residente, os recursos, etc, ...É comparar os Descobrimentos com a ida à Lua.
Sobre a importância da ACRVM e particularmente o Blogue, a minha opinião é extremamente positiva porque promovem o convívio intergeracional e procuram manter uma relação com o "terrão" natal sobretudo para aqueles que (e)migraram.
Ainda assim, sob o ponto de vista cultural a oferta deveria ser melhorada. Que diabo constato que o estômago é frequentemente alimentado e "entornado", e o esp
irito? (leia-se cultura)
Deixo, publicamente, o meu apreço pelo teu desempenho como presidente da ACRVM.
Abraço.

Luís Filipe Gonçalves Soares disse...

Agradeço o elogio. A vertente cultural está e vai ser implementada aos poucos. A construção e a afirmação da Associação é um processo sempre inacabado e que passa indelevelmente por fases,mais ou menos pensadas e planeadas...
De qualquer modo contamos contigo, para dentro das tuas possibilidades, nos ajudares e dares ideias para melhor irmos de encontro ao objecto e ao espírito de acção da nossa Associação.
Um abraço

Júlio Manuel Antunes Pissarra disse...

Lá diz o Povo que "recordar é viver" e é bem verdade. A forma apaixonada e emocionada com que o Zé nos relata esta série de momentos faz com que me transporte para eles. Parece que também por mim foram vividos, o que não é o caso. Muito bem, adorei!
Abraço.