Preâmbulo
As minhas
vivências de vilamendense estão truncadas pelos largos períodos de ausência.
Aos dez anos, em setembro de 1967, parti para o Telhal e só voltei a beber da
água fresca do chafariz (as melhores águas naturais canalizadas das redondezas…
segundo o Dr. Crespo) nas férias grandes, em julho de 1968. Este meu fado
manteve-se até ao ano de 1975… Vila Mendo só nas férias de verão!
Efetivamente, só de julho de 1975 a 79, passei a maior parte do tempo na nossa
terra, ao estudar na Guarda… e, em outubro de 79, emigrei para a bonita região
autónoma dos Açores… a nossa aldeia passou para escassos dias de férias.
Sou pois mero narrador
não participante de algumas das bonitas páginas que compõem o livro da vida daquela
que, orgulhosamente, chamamos VILA MENDO.
Outra
condicionante à minha participação em algumas vivências do antanho foi o velho
costume que obrigava as crianças e jovens com menos de 15 anos a recolher ao
doce lar, logo após o pôr-do-sol. Os mais velhos, cobertos por manta ou casaco,
faziam trabalhar o cinto nas pernas do aventureiro que fosse apanhado, durante a noite, a
circular sozinho pelas ruas! Eu vingava-me na leitura de cordel!!! Este uso
desapareceu com a emigração… os maiores ficaram sem colegas de brincadeira… a
necessidade “adultou”, precocemente, os mais novos!!!
Antes de entrar no tema principal da
incumbência, vou apenas relembrar alguns factos/costumes que ocorreram durante
a minha estada no nosso torrão e que eu considero marcos importantes na história
da nossa gente.
A emigração: a
última família a partir para o Brasil, no inverno de 1963, foi a do senhor
Porfírio (eu herdei do Zé Carlos a caneta de aparo e uma ardósia), mais tarde
também partiu uma filha do senhor Manuel Domingos e foi o meu tio Manuel Mateus
Corte (1965), o primeiro vilamendense que, de comboio com um passaporte de
turista, iniciou a debandada de gerações que percorreram a Espanha a pé, em busca do
eldorado francês. O primeiro emigrante a falecer em França, foi o Horácio
Bragança (1967/68?)… vítima de electrocussão ao bater com uma picareta num cabo
eléctrico enterrado numa rua de Paris. O aparecimento da primeira vaca de leite
de raça Frísia, adquirida pelo meu tio José Domingos (foi tema de muitas
conversas depreciativas, uma vez que não viam no dito animal forças para puxar
o arado… a corte foi, durante algum tempo, local de peregrinação para ver
aquele “monstro”)… depois foi a adesão total àquela raça vacum... o “petróleo
branco” da nossa terra. A aquisição do primeiro tractor na localidade deve-se à
família Pissarra em 1962(?) (já havia tractores na Quinta do Crespo). O novo
traçado da estrada para Vila Fernando apareceu em 1972… a sua “pintura a preto”
foi obra camarária do então presidente Abílio Curto. O arranjo da capela e a
construção do campanário aconteceu por volta de 1971/72, o mestre de obra foi o
senhor António Pissarra (pena que se tivesse queimado o retábulo de madeira
torneada que cobria toda a parede do altar). A recuperação da escola e do
espaço que hoje serve de sede à Associação é de 1975 (obra dos soldados de
abril acantonados na casa da senhora Augusta). A luz elétrica chegou em 1979 (a
Dra. Maria Pissarra “botou” o discurso e eu, a mando do Manuel Silva, “ botava”
os foguetes). O célebre aparecimento de maços de tabaco americano na quinta de
Vale Carros e que levou, possivelmente, ao vício pela nicotina de muitos dos nossos
conterrâneos (1975)… nunca a criançada se sentiu tão importante … fumar Marlboro… só os de Vila Mendo! A quezília que a nossa gente manteve com o Dr. Crespo
por causa das águas da “Balça”…venceu o nosso povo… a heroína foi a minha
madrinha Adoração. O papel do senhor Joaquim Pereira na reprodução do gado
vacum castanho e depois traçando o castanho com o frísio, quando, a troco de
uma maquia de centeio, “tornava feliz” o seu boi de cobrição! Em 1974, sob a
batuta do padre Manuel, a juventude de Vila Mendo entrou em força nas atividades
culturais de Vila Fernando… o Manuel Silva foi um dos actores principais… e
eu, por ter chegado atrasado devido aos exames nacionais do 5.º ano, fui o
responsável pela feitura dos cenários.
Relativamente aos costumes, saliento o hábito
de obrigar o jovem estranho que namorasse uma das nossas lindas meninas… a
“pagar de bicas”… e havia acordeão. O tocar das matracas na Semana Santa acompanhadas
com os gritos “é para o terço”. O vestir do pinheiro com a cheirosa “bela luz”
e levantá-lo, com a ajuda dos ranchos de ceifeiros, no dia de S. Pedro. O levar
aos “gambuzinos” o jovem que vinha para a nossa terra. De acordeão percorrer as
nossas ruas acompanhando os nossos jovens “apurados para a tropa” e que, de
cigarro no canto da boca, num desafio ao respeito maternal, marcavam a entrada
na vida adulta. No dia de casamento, ao longo do percurso da capela para o
local do jantar, as crianças colocavam numa cadeira ou num banco o seu prato
para recolher guloseimas (rebuçados… uma moedita) que os convidados ali
depositavam. O assalto às cerejeiras (ai que saudades)… a cereja foi a fruta da
malta. A criançada sentada na escadaria dos meus tios para ouvir o incansável
senhor José Bragança contando estórias de encantar que nunca terminavam…alguns
desses contos servem-me para motivar os meus alunos. As malhadas que, a partir
de março, serviam de guarida aos rebanhos e, em simultâneo, fertilizavam os
terrenos; ah, não posso esquecer quando, sobretudo aos domingos, se ia à
ribeira banhar os corpos nus e pescar…e, de quando em vez, também cobras de
água!! Por fim, recordo o espírito de cooperação/comunhão que se vivia na nossa
aldeia, quando chegava a debulha do centeio, sob o lema: “ajudo para depois ser
ajudado”. As malhas mais concorridas eram as dos Pissaras (a troco não de ajuda,
mas de giestas para o lume) e, por razões óbvias, as debulhas pertencentes às
famílias com jovens para a palha e a do palheireiro.
O Desporto
Relativamente ao…
desporto… os divertimentos de adultos, tenho de ter em conta que a geração
anterior à minha emigrou para a França tinha eu menos de dez anos, logo sou
parco em lembranças. No entanto, lembro-me de ver jogar à bola num campo no "Espinhal" e de ouvir falar de grandes cabazadas sofridas em Vila Fernando e em Albardo.
Recordo ter ouvido que, após um jogo de futebol, em Albardo, (quase todos os
jogos terminavam à pedrada) o Albertino, filho do senhor Porfírio, ter golpeado
um dedo a um sobrinho da professora que lecionava na nossa escola… e com medo
não foi à escola na semana seguinte. Quando aparecia uma bola (mesmo de
plástico), era festa para a criançada… o
luar de agosto era aproveitado até às tantas… no largo da escola. Por altura
do exame da 4.ª classe, que era feito na Guarda, os mais velhos pediam aos
alunos uma bola e se possível de couro. Estas jogatanas originaram brigas
familiares resolvidas… para jogares, só descalço. As botas de couro da escola,
duravam menos de um mês! As sapatas de pano espanholas apareceram no início da
década de 70.
Continuar os
estudos começou a generalizar-se a partir de 1967, até ali, estudar só os
filhos da família Marques/Pissarras. Com os estudantes e sobretudo os
seminaristas, (o seminário era, na altura, a melhor escola de formação
desportiva) o desporto, quase em exclusivo o futebol, introduziu no mapa do
futebol, o nosso Vila Mendo. A habilidade futebolística refinou-se na “Tapada
Velha”… num lameiro, (às escondidas do dono) e sobretudo no largo da escola. Também
se jogava nos caminhos, pois carros era coisa rara na nossa aldeia. A equipa
adversária era recebida, no início, na Tapada Velha e…acabado o jogo… vinha a
pedrada. Por falta de campo “condigno”, a nossa equipa jogava quase sempre fora
de casa. A deslocação era feita a pé… coitado de quem, durante o jogo, sofria
mazelas… o caminho do regresso tornava-se tão longo! Eu que o diga, vim do
Marmeleiro arrastando uma perna até casa e o meu primo Tó Terras veio do
Barracão a sangrar do nariz… tinha a “cana” partida!!! A terra mais difícil
de derrotar foi a Quinta de Cima… tinha um campo bastante inclinado e… as
balizas muito altas!
Em 1973, na “Laijinha”, aproveitou-se a movimentação
de terras para o traçado da estrada para Vila Fernando e construiu-se, com a
ajuda das máquinas da quinta do Crespo, num terreno da família dos
Marques/Pissarra, um campo de futebol. Ali se fizeram vários jogos, destaco, e
com bastante assistência, os embates, com a Santa Ana, Vila Garcia, Vila
Fernanda, isto no verão. Outros jogos houve, durante o ano letivo, mas, por
estar no seminário, nada sei. O milagre dos maços de tabaco americano em Vale
Carros, em 1975, para além ser a origem do vício da nicotina levou também, como
represália, à morte, pela lavra, deste campo de futebol. Na rádio Altitude, passou
o primeiro comunicado da juventude de Vila Mendo que, numa linguagem
politicamente correta para a época “atacou” quem estragou o nosso local de
divertimento. Foi-se o campo… ficou o jeito demonstrado pela nossa juventude… e
Vila Fernando aproveitou. Ainda recordo termos sido nós os primeiros a derrotar
o Albardo no seu próprio recinto (4 a 1). A tática desse jogo… Zé Albino na
“ponta parada”… e por aí marquei eu três golitos. Recordo também os torneios no
Rochoso… sempre na final e sempre roubados… perdemos! A nossa maior goleada foi
ao Marmeleiro (9 a 0), no Rochoso, num desses torneios. Vila Garcia e Barracão
eram equipas a abater. Foram raras as equipas que nesse período nos “levaram à
parede”. Depois passámos a jogar por Vila Fernando, nos campeonatos do INATEL
que se seguiram até 1979, éramos 5 ou 6 jogadores titulares. Ficaram na memória
os jogos na Mêda, em Escalhão e com a Estação da Guarda, que num domingo de
muita chuva, jogando apenas com nove jogadores (cinco de Vila Mendo) lhes ganhámos.
Nessa altura, ninguém da nossa terra se federou… não havia transporte. No
entanto, nos domingo em que Vila Fernando não jogasse, havia sempre um carro
que passava pela nossa terra para levar alguns “internacionais”…e, por vezes, para homem do apito. O auge da
fama de bons jogadores aconteceu em 1977, quando constituímos a equipa dos "Invictos", para o 1.º torneio de futebol 5 organizado na cidade da Guarda (foi o
início do célebre torneio da Primavera). Participaram 64 equipas… nós ficámos
em 2.º lugar e ganhámos a taça do “fair play”… as Lameirinhas venceram. No ano
letivo seguinte, choveram convites para jogarmos em equipas federadas.
Após a final
dito torneio, fui convidado a ir mostrar a habilidade à Associação Desportiva da
Guarda e, enquanto esperava pelo início do treino, brincava com outros atletas
quando treinador grita comigo questionando-me sobre a minha presença… deixo
logo a bola e… vai daí começou a época do atletismo. De 77 até 79, o Carlos,
eu, o Pereira, o Manuel Silva e o meu primo António Terras, muitos quilómetros
corremos. As festas de verão das aldeias passaram a incluir provas de atletismo
com distâncias de 7 a 10 km. Só me lembro de não ter ido para Vila Mendo um
primeiro lugar (nesse dia, quis estrear umas sapatas e o resultado… as unhas grandes
dos pés para o lixo). Recordo a primeira prova de Vila Mendo, a corrida da casa
do povo de Vila Fernando, a prova da festa de S. Francisco, a prova organizada
pelo Inatel em Vila Garcia (ganhámos em três escalões), mas foram as três
provas no Rochoso aquelas que me deram mais prazer de vencer. Ao nível da
cidade da Guarda, os resultados não foram tão famosos… mas sempre nos dez
primeiros.
Também em 1977,
os Terras (o Tó, o Manel, o Zé e o Ismael) conquistaram o primeiro campeonato
de xadrez por equipas da cidade da Guarda… fomos autodidatas nesta
modalidade. Representámos a Guarda nas 1.ª
Beiríadas, em Coimbra, jogando xadrez. O Tó Terras continuou…venceu pelo menos
um torneio em Pousade (na final venceu a futura campeã nacional Aida Ferreira),
enquanto eu ganhava o torneio de ténis de mesa. O “pingpong” que apresentávamos
era de grande nível, sobretudo o serviço que, apesar de cumprir as normas, era
mortífero… a mesa da casa do povo de Vila Fernando era como se fosse “nossa”
(minha e do Manuel Silva)!
Relativamente
aos jogos tradicionais, ombreávamos com Vila Fernando (Sr. Carlos alfaiate e o
Sr. Joaquim da gata eram os melhores na malha), pelo que representámos a
freguesia em vários torneios, nomeadamente em Escalhão. A sueca, a exemplo de
hoje, também era jogada… e como sempre “o bié-las ganhava ao sabias” (do Sr.
Zé Bragança).
Claro que
haveria muito mais para recordar… nomes para citar… episódios pitorescos
passados no antes, durante e nos finais dos jogos, mas não quero melindrar
ninguém…pelo esquecimento.
Uma coisa é
certa, a rivalidade entre Vila Mendo e as outras aldeias não desapareceu, mas o
desporto socializou-a e as pedradas deixaram de ser a forma “revolucionária” de
correr com o adversário.
Zé
Domingos
9 comentários:
gostei muito da tua narraçao, com ela aprendi muitas coisas sobre essa terra e a sua gente. obrigada e vai continuando a contar cisas
ricas memórias. É bom recordar. desafiem mais gente a colaborar...
Já várias pessoas foram desafiadas... umas têm e vão colaborar outras... não. De qualquer modo quem quiser colaborar está à vontade, agradecemos.
Oi Zé!
Só hoje tive oportunidade de ler o teu artigo mas o Ismael já me tinha falado do mesmo durante a minha recente estada em Vila Mendo. É um desfiar de memórias, de vivências que fizeram parte do nosso crescimento.
Sem falsas modéstias e apesar da nossa permanência na terra natal se limitar às férias escolares, podemos afirmar que vivemos o período juvenil mais rico sob o ponto de vista cultural e desportivo que Vila Mendo conheceu.
Abraço.
Manuel: e como classificas este período actual, de há treze anos a esta parte com a existência da Associação?!.
Meu caro Luís Filipe!
Fazes-me uma interpelação que, penso, se fundamenta na afirmação que fiz no post sobre o texto do Zé Domingos.
Deduzo que ao pretenderes a minha opinião expressa sobre o papel da ACRVM estabeleça um paralelo entre a realidade de hoje e a mudança "cultural e desportiva" verificada na aldeia há mais de trinta e cinco anos, período a que o texto se referia. Continua...
Continuação...
Obviamente que não é comparável! Ex: a população residente, os recursos, etc, ...É comparar os Descobrimentos com a ida à Lua.
Sobre a importância da ACRVM e particularmente o Blogue, a minha opinião é extremamente positiva porque promovem o convívio intergeracional e procuram manter uma relação com o "terrão" natal sobretudo para aqueles que (e)migraram.
Ainda assim, sob o ponto de vista cultural a oferta deveria ser melhorada. Que diabo constato que o estômago é frequentemente alimentado e "entornado", e o esp
irito? (leia-se cultura)
Deixo, publicamente, o meu apreço pelo teu desempenho como presidente da ACRVM.
Abraço.
Agradeço o elogio. A vertente cultural está e vai ser implementada aos poucos. A construção e a afirmação da Associação é um processo sempre inacabado e que passa indelevelmente por fases,mais ou menos pensadas e planeadas...
De qualquer modo contamos contigo, para dentro das tuas possibilidades, nos ajudares e dares ideias para melhor irmos de encontro ao objecto e ao espírito de acção da nossa Associação.
Um abraço
Lá diz o Povo que "recordar é viver" e é bem verdade. A forma apaixonada e emocionada com que o Zé nos relata esta série de momentos faz com que me transporte para eles. Parece que também por mim foram vividos, o que não é o caso. Muito bem, adorei!
Abraço.
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