(Publicado no jornal A Guarda na edição do dia 23 de Fevereiro)
O pensamento da humanidade (ou pelo menos da civilização europeia e ocidental) é profundamente marcado pelas narrativas (alegorias) da queda (pecado) do Homem causadas pelo conhecimento: a Árvore do Jardim do éden, a Tragédia Prometaica e o Pacto Fáustico. A primeira incita a humanidade à transgressão, a um exílio e a uma miséria constantes. Prometeu é condenado a uma tortura interminável por ter ousado roubar aos deuses a sabedoria. O esforço de inteligência em Fausto excede-se e leva a sua alma ao inferno. Através delas, há como que um crime (pecado) que define o espírito humano (de sempre; para sempre?), que ecoa seminalmente e que não pode ser apagado. Este desejo, este impulso transcendente por conhecer, por querer saber do Ser e da Substância não se pode extinguir, é incontrolável: para o bem e para o mal- os benefícios para o mundo têm sido incontáveis por tal, mas as atrocidades não lhes ficam atrás.
De facto, é o nosso passado inconsciente colectivo (e individual) que opera (n)o nosso pensamento e nos faz desejar, querer e agir… e um dilema inultrapassável, como que uma incapacidade decisiva se nos afigura: a maior luta- O Bem e o Mal- lado a lado, desde o início ao fim dos tempos. A história da humanidade resumida neste antagonismo. A história individual plasmada na concretude das acções quotidianas: boas ou más (e respectivas consequências).
Efectivamente, o Homem desde os primórdios sobreviveu, viveu, evoluiu à custa de sacrifícios individuais e comunitários. À custa do seu semelhante. Prosperou na senda do conflito e da violência.
Assim, também nós passamos a existência a fazer ou a evitar o mal. É-nos (quase?) intrínseco: o Mal que provoca a rejeição do próximo, que o desumaniza, que o elimina. O mal que denigre, que afasta, que retira, que atrasa. O mal que discrimina, que vilipendia, que difama, que corrompe. O mal que corrói os pensamentos, as emoções e até as orações. O mal que nos agride e reprime, que inveja o outro e que o condiciona se para tal houver algum tipo de poder, por mínimo que seja. Esse poder que tolda e nos faz pensar que “para além de nós o caos”, como se fôssemos especiais (que também somos). O poder que impõe e não propõe, que dita e não ensina, que humilha e não partilha, que negativiza e não tolera nem valoriza.
O mal que impede o elogio sincero, o abraço terno, o sorriso por inteiro.
Com efeito, às vezes damos por nós a tentar destruir a felicidade dos outros (por acção ou omissão) e com isso estamos a destruir a nossa; e sem que nos apercebamos tornamo-nos azedos pessoalmente e revoltados colectivamente; sem que nos apercebamos que a felicidade (ainda que inalcançável) reside no Bem-comum. O bem pelo bem- somente- sem intencionalidades, interesses e interacções dúbias. É por Ele que a humanidade poderá ser, ainda… Humana!
É difícil? É. Até porque somos culturalmente e em certa medida herdeiros da morte (logo do sofrimento, do mal); da morte de Sócrates e de Cristo…
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