(Publicado originariamente no jornal A Guarda na edição do dia 18 de Maio)
Na cruz, Cristo profere: “Meu Deus porque me abandonaste?”. Um momento, um instante, um lampejo de dúvida, quase que inaudível, abre toda uma novidade na relação do divino com o humano.
A ordem, que a divindade impôs (pelo Cristianismo) ao mundo, assume nesta interpelação uma tensão que impele a humanidade a questionar; a duvidar; a colocar em causa o poder e a querer poder; a afirmar a singularidade do Homem enquanto Homem; a confrontar a autoridade celeste. Incita-a a submeter o universo a uma lei humana negando o mistério da existência como tal.
Durante toda a história do Cristianismo, este não deixou margem para dúvidas, para questionar Deus- a missa que assume forma de teatro continuamente repetido, lembra-nos disso.
As palavras de Jesus são por si só dúbias e por tal situam-se numa espécie de ambiguidade trágica, revestindo-se assim de particular importância na forma como a nossa civilização (ocidental) se compreendeu e compreende a si mesma.
O seu desabafo como que liberta o indivíduo da mão invisível da divindade, rejeitando-a e assumindo nele próprio as rédeas do seu amanhã, profundamente terreno e não mais, não menos do que isso. É a emancipação da humanidade a acontecer no hoje- desafiando, negando, contrapondo, fustigando a ordem, a autoridade e a disciplina por um lado e o aconchego e a protecção do divino, por outro.
Este conflito com Deus e com o que ele representa, leva-nos a perguntar: para onde caminhamos enquanto humanidade? Surgindo novas questões, novas inquietações; não fáceis, não resolvidas. A ausência do divino, e portanto de toda a sua ordem, limites e contenções, anunciam todo um mundo novo, que de tão novo pode ser velho: com renovado e aprimorado sofrimento, dor e o mal com que nos temos brindado ao longo da história.
Bastará a razão para perceber, para nos percebermos? Queremos que baste mesmo? Estaremos preparados para esta avalanche de indagações, cogitações e soluções? Estaremos conceptualmente preparados para nos chegarmos a nós próprios? Estaremos aptos para a torrente de pensamentos (que podem e são caos, tantas vezes), filtrá-los, caracterizá-los, arrumá-los e formar um pensamento-pensamento sobre a vida e a existência como tal? Queremos mesmo sair da zona de conforto, do regaço protector e justificador que a religiosidade nos oferece? Queremos ser abandonados?
Um sem número de interrogações originárias e primordiais nesta simples menção quase que imperceptível: “Meu Deus, porque me abandonaste?”
Mas estas palavras inquietas também podem indiciar que o divino se transcendeu em humano! Que Jesus aproxima a divindade à humanidade. Não é o pobre Homem que clama por Deus; é Ele que realiza o movimento contrário, que se aproxima, se humaniza e faz humanizar.
O divino deixa de ser autoritário para ser autoridade fraterna. Não castiga, não impõe; propõe. Assegura um diálogo esperançoso com o Homem. Impõe-lhe limites, mas não o limita. Traça uma Presença partilhada, um porvir comum envolvendo-o no seu próprio destino e fim.
A ambiguidade do alcance daquele dizer como que racionaliza a fé conferindo-lhe realidade; ao mesmo tempo, desobjectiva a razão aportando-lhe (razoável) subjectividade…
Mas bastará a fé para perceber, para nos percebermos? E um sem número de inquietações e desassossegos se desnovelam num vai-vem de possibilidades (contraditórias, às vezes complementares)…
Acreditar? Não acreditar? Conflito imanente! Eterno paradoxo-reflexo da nossa interioridade, das nossas… Identerioridades…
Razão? Fé?
Nenhuma! Ambas!!.
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