O admirável contador de estórias- parte III
Nas
noites de verão, as varandas e os quinze degraus de acesso das duas casas
transformavam-se num improvisado anfiteatro invertido, pejado de crianças e
adultos. O nosso contador de estórias, de pé, com os antebraços apoiados na
resguarda que separa as duas varandas, divisória constituída por um monobloco
granítico, dominava as atenções e quando expressamente solicitado ou por sua
iniciativa dizia, qual pancada de Molière - “É
cmó oto”1. A expressão mágica tinha um efeito arrasador, todos
nós nos transformávamos em espetadores atentos e silenciosos para ouvir a
estória que, inevitavelmente, se seguia.
No
final de cada estória comentava-se a mesma e salientavam-se as lições de moral.
Tratava-se, portanto, de um verdadeiro “momento do conto” onde o narrador assumia
convicta e pedagogicamente a arte da comunicação.
Eis algumas das estórias que o compadre contava mais frequentemente, sem a reprodução fiel da forma como eram narradas mas, depois das expressões acima referidas, o leitor pode imaginar quão maravilhoso e interessante era ouvi-lo.
Eis algumas das estórias que o compadre contava mais frequentemente, sem a reprodução fiel da forma como eram narradas mas, depois das expressões acima referidas, o leitor pode imaginar quão maravilhoso e interessante era ouvi-lo.
1. A mentira grande como o Credo
Uma viúva vivia numa quinta de renda com os seus três
filhos: um padre, um doutor e um pastor.
Um dia foi falar com o senhorio e disse-lhe que não
tinha dinheiro para pagar a renda.
O senhorio fez-lhe a seguinte proposta:
- Se um dos teus filhos me trouxer uma mentira tão
grande como o Credo, eu perdoo-te a renda.
A pobre viúva chegou a casa e relatou aos filhos a
proposta que o proprietário da quinta lhe fez. Quer o padre, quer o doutor, não
mostraram ser capazes de engendrar tão grande mentira mas o filho pastor
aceitou o desafio.
- Fica descansada, mãe, que eu vou falar como
senhorio!
No dia seguinte o filho pastor dirigiu-se à casa do
senhorio que também era seu padrinho. Ao chegar junto do senhorio disse-lhe:
- Toquei o sino com um badalo de lã e ouvia-se por
10Km de terra chã. Depois fui ao rio colhi agrões (agriões?), vendi agrões e
até ao padrinho lhe vendi um cabaz.
Mas isso é uma grande mentira – respondeu o senhorio.
- Então, meu padrinho, minha mentira aprovada, renda
da quinta perdoada.
2.
O pintassilgo e o cuco
No tempo em que os animais falavam, um pintassilgo
estava a cantar às portas do céu e Nossa Senhora gostou tanto do seu canto que deu
instruções ao S. Pedro para que lhe desse tudo de bom para o passarinho comer.
O pintassilgo saiu do céu, todo contente, a cantar e
encontrou um cuco.
O cuco perguntou-lhe o porquê daquela alegria toda e o
pintassilgo relatou-lhe então a forma com foi tratado no céu.
O cuco foi, também, pôr-se a cantar às portas do céu …
Quando regressou, vinha a chorar e encontrou-se com o
pintassilgo, este perguntou-lhe o que tinha acontecido.
O pobre do cuco respondeu-lhe que tinha levado com uma
moca e que não lhe tinham dado comida.
Então o pintassilgo perguntou-lhe como tinha cantado.
- Eu cantei cu-cu - respondeu o cuco.
- Ai cantaste com o cu, então cantasses com o bico –
disse-lhe o pintassilgo.
3.
O Zé Miséria (ou
“De galhoto em galhoto”, como nós
pedíamos)
O Zé Miséria foi
para o Brasil e deixou cá os pais, um irmão e uma irmã.
No Brasil não lhe
correu a vida bem e regressou. Quando chegou a casa dos pais encontrou o irmão
a cozer feijões e a comê-los.
- Que estás fazendo,
pá?
- Comendo os de cima
e esperando os debaixo.
- Então e a nossa
irmã?
- Está chorando o
riso do ano passado.
- Então e os nossos
pais?
- O pai viu um
mealheiro no cimo de um castanheiro, subiu lá e caiu de galhoto em galhoto,
chegou ao chão e espatifou-se.
- E a nossa mãe?
- A nossa mãe com
tudo isto foi-se… Fizemos-lhe um funeral tão lindo que a saia tinha trinta
cores.
- Ui! Isso foi uma
riqueza!
Compreensão da estória:
O irmão estava a
comer os feijões crus à espera que viessem os do fundo já cozidos.
Quanto à irmã, ela
namorava um rapaz e ele arranjou-lhe um filho e agora passa miséria porque tem
que trabalhar para se governar a ela e ao filho.
O pai com a queda
que deu do castanheiro morreu.
Relativamente ao
funeral da mãe, a saia tinha trinta cores que correspondiam aos trinta
remendos.
O diálogo entre os irmãos continuava:
- Ah, mas ainda
existe o mealheiro. Tinha muito dinheiro – perguntava o brasileiro.
- Olha, eram dois
ouriços com castanhas podres.
Concluiu o brasileiro, o Zé Miséria:
- Puta que pariu Portugal, se no Brasil há miséria…aqui
há muita mais.
N.B.
1. Ao terminar este
“folhetim” sobre uma das figuras vilamendenses que recordo com mais saudade e
que tentei reportar o mais fidedigna possível a forma singular como o contador
de estórias transmitia o seu enorme manancial de saberes.
Quis, também, homenagear
e deixar publicamente o meu apreço por este homem que, apesar das dificuldades
em se expressar, era capaz de maravilhar crianças, jovens e adultos com as suas
estórias.
Um verdadeiro
autodidata, este admirável contador de estórias.
Obrigado, “compadre” José Bragança!
2. Agradeço a todos aqueles que contribuíram para o meu
avivar de memória, particularmente à minha mãe.
Manuel
da Silva Gonçalves
3 comentários:
grande Zé Bragança.
gostei dos artigos sobre o sr. Zé.
Eram bom que escrevessem sobre mais pessoas..........
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